uma voz líquida
espreita pelas frestas do quarto.
desliza pela cal
deixando o rasto escuro
de árvores com o inverno nos dedos,
senta-se sobre a cama
escarnecendo da volúpia do corpo
vencido pelo amor sem fábula.
(há palavras que deviam ser afogadas)
ele remexe a febre
com os dedos trémulos da candeia
que toca a treva da terra:
- quem és tu? (quem sou eu?)
- que me queres? (que quero?)
- por que me persegues? (por que não me liberto?)
silêncio apodrecido
(as palavras têm prazo de validade
no bosque nocturno da tua boca)
ele fecha os olhos e adormece
o delírio vegetativo que
suspira pelo cais do regresso
a imagem repete-se...
uma voz líquida abandona o quarto
enquanto o silêncio arde no carvão do peito.
fotografia de José Figueira
jorge,
ResponderEliminarto procurando uma cantiga pra te mandar, que diz assim...
Astrolábios
(melodia de kleber albuquerque derramado sobre poema de gero camilo)
Arde-me o siso
Coração ungido a ferrolho
Arde-me entorpecido
Vil vão
Novamente novo
Como nunca pode ser um outro
Uma lágrima na lapela
Paz de espírito
Ontem eu lamentei demais
Por mãos que me jogaram
Nesse espaço de astrolábios
Hoje aprendi como
Se voam as mãos
Como se vão
Como carvão nos lábios
O homem tem de voar
Enquanto cai
Tem de alcançar
E vai
vá, poeta bracarense... vá!
Amigo Jorge
ResponderEliminar(há palavras que deviam ser afogadas)
Que imagem mais linda, significativa...
Por mim , já temos aí um grande poema. Mas , não: você faz um trabalho completo.
Encantei-me, como sempre me encanto com seus versos...
Parabéns!
Um forte abraço.
obrigado pelo arrepio na pele que acabas de me provocar com este belíssimo texto, robertílimo! sabes que, mesmo quando a rota parece difusa, deito mão ao astrolábio, ao quadrante, ao nónio, à carta-de-marear, mas, sobretudo, às estrelas. é lá que tudo se escreve... em tinta de açucena pela mão de cada um de nós.
ResponderEliminarum abraço desde braga!
Há rios que percorrem vales, que contornam montanhas e serpenteiam nas planícies até seu encontro com o mar. Há águas que endurecem no cal e há dores liquefeitas que restam sal a temperar o poema e vida. Águas movem moinhos e ao final voltam ao fundo da terra. Novamente poemas os ciclos, Jorge. Bela e profundamente, caríssimo.
ResponderEliminarabraços e bom final de semana
se há palavras que respiram à tona ou mesmo debaixo da água são as suas, zélia. porque elas são o próprio oxigénio de que se fazem os mais delicados poemas!
ResponderEliminarum beijinho!
os teus comentários, sim, são verdadeira poesia, mai. poesia e lucidez (se é possível ligar estas duas realidades...). sabes como titularia o teu poema-comentário? da água. simplesmente...
ResponderEliminarum beijinho e obrigado por ajudares a tornar maior a poesiosfera
Por vezes, pergunto-me até quando(ou onde) insistiremos em nos agarrar a correntes que já se soltaram de nós...
ResponderEliminarJorge, minha respiração ficou em suspenso diante das imagens e sensações dos teus versos.
Belíssimo, Poeta!
um beijo meu
às vezes pergunto-me qunado ou onde as correntes se hão-de soltar de nós... pequena nuance de capital relevância, querida amiga andrea. é que esta mudança de perspectiva (quase) tudo muda.
ResponderEliminarobrigado pelo teu carinho sempre tão especial!
Bem verdade, Jorge.
ResponderEliminarMas penso (e experienciei) que as correntes por vezes nos soltam, e nós é que insitimos em querer segurá-las. E soltar o que queremos, mas já não se prende a nós, é dos aprendizados mais difíceis...
beijinho, querido
Caro Jorge, permita-me citar Roland Barthes que diz que a literatura (a boa evidentemente) se insurge contra a linguagem que a aprisiona, mas paradoxalmente só consegue sobreviver através dela. As palavras merecem ser afogadas para que surjam versos, que é a palavra em estado de extâse, completamente desmistificada da sua origem. Como aliás sua bela literatura faz. Grande abraço.
ResponderEliminarsem palavras... dás um brilho tão profundo ao que escreves que ficam as emoções em vez das palavras.
ResponderEliminarsempre
belo!
O borbulhar do sangue ou da água alimentando um caos de possibilidades...
ResponderEliminarComo sempre você surpreendendo meu caro
Abraço!
andrea, rendo-me às tuas palavras... é bem verdade: tantas são as ocasiões em que complicamos as situações (por mais intrincadas elas sejam).
ResponderEliminarum beijinho terno!
é isso mesmo, assis: a literatura insurge-se contra a linguagem dos homens para a refundar num novo código que está para lá dos referentes para que as palavras apontam. é esse o seu fascínio maior.
ResponderEliminaro pior é quando o signos nos enredam numa melodia de que não se consegue sair. é nesse então que se clama pela sua desinvenção.
um abraço, poeta!
amiga andy, que bom conseguir escrever sabendo que há pessoas com a tua sensibilidade e delicadeza que me lêem. por elas vale ainda mais a pena.
ResponderEliminarum beijinho doce!
há momentos em que a ordem se torna im-possível; nesse então emergem as possibilidades do caos.
ResponderEliminarum abraço, juan!
bracarense,
ResponderEliminarembarquei a cantiga.
o cantor chama-se rubi... assim mesmo, como a pedra.
abração desde new jersey, capital mundial do lixo despejado por nova york (rs).
r.
jersey boy, acaba de desembarcar no meu cais. se a letra é linda, que dizer da melodia... combinação fantástica! um abraço!
ResponderEliminarsilêncio apodrecido
ResponderEliminar(as palavras têm prazo de validade
no bosque nocturno da tua boca)
Creio mais que no prazo de validade do que na eternidade.
como tu, vanessa, também eu acredito nas palavras ternas... jamais eternas.
ResponderEliminarum beijinho!
Jorge, teu comentário sobre cesariny abriu-me uma fome de reler aquele poema tão lindo...reli-o hoje, inúmeras vezes, sentindo as palavras dançarem dentro de mim, cada qual com seu ritmo,sua força. gosto sobremaneira dos primeiros versos
ResponderEliminarmas, como uma coisa sempre me leva a outras, relembrei as palavras que mais amo de Tagore, e as te deixo aqui, sem mais palavras minhas, que as minhas são dispensáveis:
Se Não Falas
Se não falas, vou encher o meu coração
Com o teu silêncio, e agüentá-lo.
Ficarei quieto, esperando, como a noite
Em sua vigília estrelada,
Com a cabeça pacientemente inclinada.
A manhã certamente virá,
A escuridão se dissipará, e a tua voz
Se derramará em torrentes douradas por todo o céu.
Então as tuas palavras voarão
Em canções de cada ninho dos meus pássaros,
E as tuas melodias brotarão
Em flores por todos os recantos da minha floresta.
(Rabindranath Tagore)
(um bom início de semana, querido!)
Andrea, Cesarini é o paradigma maior do génio incompreendido; viveu num tempo que não era o seu e, hoje, não só é reconhecido como um dos grandes, como deixa escola e seguidores um pouco por todo o lado.
ResponderEliminarEntretanto, naveguei sobre as águas de Tagore e, deixa-me dizer-te, que a melhor forma de o fazer é deixando que a corrente silabária baile nos lábios não da boca mas do coração... em silêncio.
um beijinho e votos de uma excelente semana!
Ah Jorge; parece que te vais afogar nessa água, deixa-a correr, fora e longe.
ResponderEliminarO rio não volta para trás, termina na foz, não passa duas vezes pela mesma ponte!
Beijo e o nosso abraço.
Laura
Alguns detêm a forma e a estética tão imbricadas
ResponderEliminarque tornam o tema mero coadjuvante. É o seu caso, meu caro!
Abraços
quando vejo refletido na água meu rosto, eu percebo quem realmente sou!
ResponderEliminarsou amante da água.. pura e cristalina, mas nem sempre é assim.
um beijo querido e uma ótima semana !
Ah!!! O Cesariny anda por aí!!!!
ResponderEliminar:D!!!!
a água que escorre é a da vida, lauríssima. tem de correr, estagnar, voltar a correr, purificar-se, renovar-se e, finalmente, entrar no corpo como o relâmpago que ilumina a aldeia numa noite de breu.
ResponderEliminarum abraço!
Ah, o cesariny anda por aqui, por aí, um pouco por todo o lado. há um cesariny dentro de cada um de nós :)
lou, um agradecimento pessoal por palavras tão doces que ruborizam a mão e a pena.
ResponderEliminarum beijinho!
é bem verdade, querida sarah. a água é incolor e inodora e é essa negação sensorial ("in") que tantas vezes faz com que a imagem nela projectada mascare aquele que realmente somos... ou o próprio rosto se esconda na sua mão ingénua.
ResponderEliminarum beijinho grande e uma óptima semana, sarah! uma maravilha ter-te neste cantinho!
Teu lirismo me fascina...
ResponderEliminarEvoé !
obrigado, cris! sabe tu que o teu blogue se tornou lugar de visita recorrente.
ResponderEliminarum beijinho!
Jorge, sempre gostei mais dos incompreendidos, demonstram mais largueza de alma...
ResponderEliminarquanto a Tagore, concordo bem contigo...em silêncio.
Lembra-me também uma passagem de bartolomeu campos de queirós:
"ainda menino, eu soube que o silêncio é porto, onde ancoram o vivido e o sonhado. E do porto do silêncio eu parti para todas as minhas viagens, tanto para o além do firmamento como para o interior de mim. A palavra só se desperta diante do ruído do silêncio"
beijinho!
obrigado por teres trazido grandeza e profundidade a este espaço, andrea; pelo que relembras de bartolomeu campos de queirós; pelo que nos ofereces da tua própria tinta.
ResponderEliminarum abraço!
Comecei a ler alguns comentários e pensei: td jah foi dito... serah q devo comentar??? Pois bem, resolvi q sim, não podia deixar as minhas palavras se afogarem. Digo isto, pq foi o q mais me chamou a atenção: "(há palavras que deviam ser afogadas)" - na hr me veio a mente: como pode? como pode tamanha criação? e como pode alguém possuir o poder de despertar tantas emoções a fim de inflar meu peito com apenas uma frase? Pode. Vc pode! Vc o fez! Aplaudo seu talento. Seu riquíssimo talento.
ResponderEliminar;) bjs***
Eu singro esses mares e coo céu e amplidão.
ResponderEliminarObrigadíssimo, Pimenta.