sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

assimetria vocal: o tempo e a fotografia na geometria do poema


vai ser  preciso sangrar as palavras
vai ser bom ver correr o vidro das palavras
a palavra partir a palavra chegar
Mário Cesariny

fotografia de jorge pimenta


escavo os versos devagar
outrora visões de futuro,
hoje dicionário dos corpos
que desintegram bocas e desprendem memórias
na aridez da palavra listada.

talvez agora não saiba as suas sementes,
talvez já não adivinhe a terra e o sol
ou a germinação da cal 
porque a geada queima os dedos e seca a tinta.
e a mão, vazia de gente,
esqueceu o lugar das palavras
lascou o verso
e quebrou a estrofe,
numa obra inacabada, injuriosa, quase falsa.

Na cela da escrita,
flores de papel libertam pétalas
com toda a linguagem
como se o poema fosse apenas
um corpo fotográfico
despido de verbo
sintaxe nua de frutos sépia
quase murmúrio
a empurrar-nos para o início do tempo,
onde as árvores tinham raízes de alfazema
a explodir na seiva das coisas
em rotação e translação de braços:
a nossa primeira pele
deitada na noite-beijo que sabe morder os lábios:
o silêncio de todas as coisas.

no poema incompleto ainda somos respiração infinita.
é assim o tempo das fotografias
e de todos os nossos versos lentos.

toranja, quebrámos os dois

sábado, 21 de janeiro de 2012

dos lugares [in]acessíveis: geografia e poesia

A amiga Ira Buscacio escreveu um texto-arrepio [assim é toda a sua poesia] no seu Faces do Poeta e teve a gentileza de associar-lhe o meu nome. Para os que já conhecem a sua obra, desnecessária se torna esta referência; para os demais, valerá a pena a visita: http://irabuscacio.blogspot.com/2012/01/carta-para-um-amor-triste.html


A certa altura, dei-me conta de que o tempo passava tão depressa que me sentia a correr para fora da vida. […] Mas o pior é o corpo que começa a revelar o seu cansaço, a recusar acompanhar-me nos meus sonhos que persistem.
Alçada Baptista, O Tecido do Outono

porto: ponte d. luís [fotografia de jorge pimenta]


cada lugar meu imita todas as promessas
mas hoje sou apenas alguns lugares
e o que remanesce da fome e da sede
em taças voltadas
talheres sem prato
e garrafas quebradas.

onde é que ficam os teus ramos exatos,
as aves azuis
e todo o céu que se desdobra
em voo picado
umas vezes aprendido, outras esquecido?
onde guardas a água
e todos os objetos astrais
que acendem a candeia do corpo
e agitam a galáxia dos olhos?
onde está a labareda dos teus lábios
que ascende pelas pernas
volteia no vórtice do mundo
assentando a argila e o desejo
em cada poro incandescente
como carícias de sangue tóxico
a explodir nas ancas do poema?

onde?

cada lugar meu imita todas as promessas.

quinta do bill, se te amo

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

notícias do tempo

fotografia de jorge pimenta



Ana Cecília Romeu & Jorge Pimenta

Colocou a mão sobre o pedaço de jornal rasgado pelo homem. Sentiu-se arranhada pela tinta negra que se afogava nas digitais. Arabescos gravados em fibras de algodão com aroma de doce caseiro. A retina colheu grifos desordenados no que restara do papel areia. Nele, uma breve notícia sobre o tempo. Nos escritos da mulher, os tempos de outrora.

são assim as viagens do corpo
em cada dia de amores tristes:
envelhecem retinas
em polaroids sem negativo,
algures nos recortes sépia das notícias
dos homens
dos jornais de vida
dos olhares pretéritos.

Fragmentos colados nos pulsos cantam como pássaro livre, mas ali, secos e inertes, no que se transformaram: pontos de tinta em papel.

sabem que um dia foram frutos da verdade
das suas meias mentiras
e dos segmentos de respiração
que aceleram o peito
e agitam alvoroços
no encontro das palavras com os dedos.

Notícias breves a saltar somente em sonhos.

um só homem,
uma só mulher,
e tantos tecidos por remendar
em linha cor de precipício
comprimento de vendaval
num único compasso de tempo
[não o que rasga nomes com a tinta dos dedos
mas o verdadeiro,
aquele que se confunde com a respiração],
o tempo que inventa o mecanismo perfeito do
silêncio:
desce pelas paredes
rebola pelo chão
penetra os objetos
engole conversas
engravida o ar
para, no olhar seguinte,
o coração ser apenas promessa:
talvez uma hora depois…
talvez depois do calendário…
talvez nunca mais…

Tempo instável com muita nebulosidade, previsão de chuvas para as próximas horas, temperatura máxima em torno de 15 graus, com mínimas de 8 graus à noite.

Colocou a mão sobre o pedaço de jornal rasgado pelo homem. Nele, uma breve notícia sobre o tempo. Nos escritos da mulher, os tempos de outrora.

Ana Cecília Romeu & Jorge Pimenta

Marisa Monte & Paulinho da Viola, Dança da Solidão

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

etiquetas XVII

bill brandt

I. mil e uma íris para a contemplação da aurora

[dedicado ao poeta Assis de Freitas]

és tu a voz
de todos os animais-escravos
que respiram no interior das palavras.
entre ausências
sementes nos horizontes
e sílabas de urgências:
é sempre pelos dedos que costuras o coração.


II. imagens fixas: rostos e versos
debaixo das estrelas
escondem-se todas as noites:
apascentam códigos
acariciam palavras
idolatram bocas,
sempre em voz seca
porque a tinta marca mais o rosto do homem
do que os contornos do poema.


III. poeta
olhos líquidos
incêndios mudos
e nas veias perdidas, já sem fôlego,
todos os poemas coagulados.

são assim os corpos à tona da morte.


IV. polos e extravios
seguro o teu olhar numa mão
e a tristeza na outra.