quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Intervalo de viagem: entre o princípio e o precipício do mundo


Pontevedra, Galiza [Espanha]

"Fisicamente, habitamos um espaço, mas, sentimentalmente,
somos habitados por uma memória."
José Saramago [retirado de uma entrevista]

Caem-me das mãos as asas no que resta do avião com que aprendi a voar. São hoje pedaços de viagens distantes, exalando aromas em tons de laranja-menina e tessitura de primavera.
Olho-lhe as asas à distância do tempo e ainda vislumbro resquícios da cola com que lhe esculpi a ossatura. E a memória regressa aos gestos, aos espantos, aos risos por entre a farda de major alado e a calça coçada pelos pontapés na bola. Sente-se a dor a exalar daquele plástico carcomido pela espera de um regresso aos céus que um dia dele foram, assim ligeiro, quase altivo, fénix de orgulho inteiro bem acima do tempo que nos denuncia mortais. Viveu anos junto do pó, no sótão de tantas primaveras, beijos meios com a boneca preferida da minha irmã e um triciclo que suspirava por explodir desde a primeira vez que sentira os meus pés nos pedais.
Dobro os joelhos e ajusto-lhe os braços sobre aquele corpo em ferida mansa. Parecia sorrir, como todos os aviões que um dia inauguraram o ar. Ele e eu, por detrás dos buracos que prostituem débeis feixes de luz neste silêncio de loucura clara. Desejo, secretamente, que o tempo volte a unir e não a dispersar, por isso peço à mariposa que permanece sobre o orvalho das glicínias para humedecer a infância; será que ainda me cabe na algibeira?
É assim a saudade, uma linha do tamanho do olhar a incendiar todo o corpo, desde a copa até às raízes. Alguma vez o homem foi muito mais do que isso?



dilek kots, allspice, cinnamon and a kiss [from the film politiki kouzina, a touch of spice, o.s.t.]

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

canção para outonos sem estação e astrolábio

brejão, alentejo

os sonhos fazem-se combinando recordações
jorge luis borges

é sempre assim no outono:
há uma voz que canta
e me toca levemente no corpo
a exigir suspensão.
Nunca sei se planeia roubar a noite, as estrelas
ou mesmo a sombra dos homens
enquanto atravessa zéfiro
e semeia, rebenta, floresce
sobre a terra que me cobre as raízes.

acordo
[alguma vez estive a dormir?].
de repente
tudo se ilumina na lanterna do homem:
a porta
o quarto
a cama
e todos os nomes e rostos que ali respiram,
bem debaixo dos céus, quase acima dos olhos,
na melodia crepitante de uma rima.

espreito para dentro das veias
e para fora da roupa
mas já todo o tempo me habita
e os cavalos rubros anunciam abismos.

quem é que me procura?

a luz incandesce os caminhos
e os pés douram o sangue.
apenas a canção permanece fria.


sokratis sinopoulos, a the universe [from the film politiki kouzina, a touch of spice, o.s.t.]

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

ode nocturna aos homens de meteorologia inexorável e previsão silenciosa


bill brandt

debaixo das estrelas
degladiam-se todos os homens
na sua existência de papel:
o cutelo transpira-lhes as mãos
como o sexo insone
a arder em labaredas e sismos,
ameaça a ameaça
espasmo a espasmo
gemido a gemido,
umas vezes com a leveza dos anjos,
outras em estrépito animal;
em ambas a respiração sanguínea a espreitar o ponto de ruptura:
estica range sua rebenta
tingindo de branco as duas pontas da corda,
agora estáticas frouxas vencidas.

mas até a vida acaba em anagrama.
escreve-se já não da esquerda para a direita,
mas com todos os nomes,
em caos e combustão,
aguardando pacatamente a hora
nos arquivos da memória do registo civil.

afinal a morte é o alicerce de todos os rostos.

lhasa de sela, rising




A propósito de livros e leituras, a Andy, amiga do blogue lua [http://andy-luaprateada.blogspot.com/], lançou um desafio a uns quantos bloguers, eu incluído.
Replico aqui com o maior gosto, agradecendo, desde já, a distinção.

1. Existe algum livro que lerias várias vezes?
Os livros são os momentos. Por isso há livros que li três e quatro vezes em momentos diferentes e que não sei se não voltarei a ler: Viagens na Minha Terra, de Garrett; Eurico, o Presbítero, de Alexandre Herculano; O Medo, de Al berto; Ofício Cantante, de Herberto Hélder; O Retrato de Dorian Gray, de Óscar Wilde, A Insustentável Leveza do Ser, de Milan Kundera…
2. Existe algum livro que começaste a ler, paraste, recomeçaste, tentaste e tentaste mas nunca conseguiste levar até ao fim?
Todos aqueles em que me não perdi…
Mas também há aqueles que, num determinado momento, não me seduziram, tendo-o conseguido mais tarde, o que sugere que o leitor é mesmo uma construção para onde convergem conhecimento, maturidade linguística e cultural, mas, sobretudo, todas as experiências e vivências individuais e interindividuais. É o caso de Ulisses, de James Joyce, por exemplo; só uns anos depois da primeira investida consegui chegar a Ítaca.
3. Se escolhesses um livro para leres no resto da tua vida, qual seria?
Um só livro não vale toda uma vida, mas a vida vale todos os livros que nela caibam.
Pensando num título: O Livro em Branco. Tenho a certeza de que no resto da minha vida ele acabaria por se compor com o essencial: a vida nas palavras.
4. Que livro gostarias de ter lido, mas que por um qualquer motivo nunca leste?
Tudo o que quis ler, li. Até mesmo O Crime do Padre Amaro, do Eça, quando ainda menino, às escondidas ou debaixo dos lençóis, à noite, em absoluta transgressão, “por não ter idade suficiente para as questões nele suscitadas”, na opinião da minha mãe. Agora, tenho a certeza de que há muito que ainda não “quis” ler mas que está na hora de começar a querer… António Lobo Antunes é, talvez, um dos casos mais prementes.
5. Qual o livro lido cuja “cena final” jamais conseguiste esquecer?
Boa! Só agora percebo que nenhum final me arrebata mais do que a magia com que se constrói o alinhamento narrativo. Um final só é excepcional se for bem preparado, bem alimentado na sua própria antecâmara. Arriscando um livro todo ele surpreendente [sendo o final igualmente irresistível]: A Metamorfose, de Kafka.
6. Tinhas o hábito de ler quando eras criança? Se sim, qual o tipo de leitura?
Cresci em redor de livros. Os meus pais têm uma excelente biblioteca e durante anos leram muitos e bons livros. Recordo-me de, na infância, ter lido aqueles livros que todos os miúdos do meu tempo liam (Os Cinco, Os Sete, ambas as colecções da Enid Blyton, O Diário de Anne Frank, Os Putos, de Altino tojal, muita BD – Astérix, Lucky Luke, Tintim, por exemplo), mas também clássicos, como as obras de Júlio Dinis, Camilo Castelo Branco ou Soeiro Pereira Gomes.
7. Qual o livro que achaste “chato”, mas que, ainda sim, leste até final?
Todos os livros que li sob as instruções rígidas da escolaridade marcaram-me, num primeiro momento, negativamente. Alguns deles acabaram por ser recuperados, mais tarde, quando na sequência de leituras espontâneas ou de insistência. Presentemente leio/releio apenas aquilo que me agrada.
8.Indica alguns dos teus livros/autores preferidos.
Na poesia, toca-me particularmente a escrita de Al berto, Herberto Hélder, Nuno Júdice, Jorge Sousa Braga, Sophia de Mello Breyner, Rimbaud, T.S. Eliot, Pablo Neruda, Dylan Thomas, Ezra Pound…
Na prosa, sou um leitor indefectível de toda a obra de José Saramago, para além de ter um gosto especial (que me vem da juventude) pela obra dos neo-realistas (sobretudo Fernando Namora e Manuel da Fonseca). Num registo totalmente diferente, mas admirável (porque conhecedor do homem, mas sobretudo da mulher, das relações e dos afectos) é, ainda, a obra de Alçada Baptista (especialmente o Tecido de Outono). José Luís Peixoto é, para mim, hoje, um nome igualmente incontornável. Gabriel Garcia Marquez reveste-me na pele. Depois, ainda há os clássicos, com Eça à cabeça…
9. Que livros estás a ler?
Estou a terminar a segunda leitura [a primeira foi há quase 20 anos] de O Ano da Morte de Ricardo Reis, de José Saramago. Encontro-me na fase em que Ricardo Reis se confronta com todos os seus fantasmas, receios, delírios e até fantasias, projectados na indefinição em torno de questões como “regressar ao Brasil/montar consultório em Lisboa?”; prosseguir com os encontros fortuitos e carnais com Lídia/explorar os afectos quem sabe se com Marcenda?”. A funcionar como entidade sub/sobreconsciente, Fernando Pessoa, seu pai e criador, acabado de morrer, mas que continua a aparecer-lhe em imagem imaterial.
Leio, ainda, a poesia de Daniel Faria, em Os Líquidos, uma pechincha de 3€ numa feira de rua, em Lagos.
Depois, há todos aqueles que leio sempre que posso, nos blogues: Assis, Roberto de Lima, Rejane Martins, Cecília Romeu, Laura Alberto, Andy, Tânia Contreras, Cris de Souza, Outros Encantos, Analuz, Cid@, Ingrid, Dilso, Celso Mendes, Assíria, Lara Amaral, Suzana, Lívia Azzi, André, Priscila, Carla Diacov, Zélia, Sandra, Luíza, Vanessa, Ira Buscacio, Oceano Azul, Vivian, e tantos outros que ajudam a povoar o meu quotidiano leitor. 

sábado, 13 de agosto de 2011

Festival Sudoeste 2011 – Interpol e The National [dia 07 de Agosto]


Tens menos de 30 anos, gostas de música discoteca e de beber até que a alma doa? Vem ao Festival Sudoeste!!!


Este poderia muito bem ser o slogan do festival de Verão mais conhecido do país, aquele que atrai quase 40.000 pessoas por dia ao imenso recinto da Herdade da Casa Branca, numa das zonas mais bonitas de Portugal: a Zambujeira do Mar.
Não precisei de conferir a minha data de nascimento no Bilhete de Identidade e muito menos de espreitar as faixas que guardo zelosamente no mp3 para ver [não a dobrar] e saber que estava deslocado do maléfico slogan que aqui engendrei.
Mas, o que me arrastou até lá, afinal? Loucura ou masoquismo? Nem uma coisa nem outra.
A verdade é que mesmo com tristes notícias de assaltos em tendas e histórias de violência e drogas, o SW tem algo de muito especial que me atrai desde há alguns anos (ainda que com presenças intermitentes): praia, pé no chinelo, calor, [alguma] boa música, um ambiente que no recinto é descontraído e muito simpático, mas, sobretudo, memórias [muitas, vividas e por viver] justamente tudo o que em cada um de nós permanece para lá da frágil materialidade.


Pode parecer estranho, mas, sem o saber, planeei esta viagem até à 15ª edição do SW em Paredes de Coura, no distante verão de 2008, quando, ao som de Sex Pistols, confidenciei aos camaradas de festival que a banda a que mais queria assistir ao vivo se chamava Interpol. Choque absoluto! Então, e Radiohead? E Pink Floyd? E U2? Por mais argumentativo que tenha sido, a verdade é que não fui capaz de vencer o cepticismo de todos e das minhas palavras certamente sobraram faíscas de provincianismo ou sandice musical.
A resposta encontro-a nas minhas mais fundas raízes musicais, quando, ainda menino, escutava Joy Division, banda do mítico Ian Curtis que compunha sobre a vida como ela é [ou nos parece], sempre num registo sombrio que explora as viagens emocionais do indivíduo, o caos e a ordem, a alienação, a degeneração urbana e demais sensações com que nos degladiamos no dia-a-dia, muito para lá do que o corpo e a mente sabem [podem] suportar.
E porquê Interpol? Porque nenhuma banda desde então, na esteira de Joy Division, foi capaz de me tocar tão intensamente os sentidos, e sobretudo a alma, como esta nova-iorquina.
Imaginá-los ao vivo foi uma verdadeira aventura sensorial, mesmo sabendo que o seu registo se enquadra mais num ambiente intimista, pessoal e fechado de uma qualquer sala de espectáculos do que num cenário de festival. Tê-los no Sudoeste era um risco que eles, eu e todos os que se deslocaram até à Zambujeira propositadamente para assistirem à sua actuação tinham de calcular.


O concerto, inicialmente aprazado para as 22h, começou com um atraso de 45 minutos. Talvez por isso, a que acresce o facto de esta ser a derradeira noite de festival e ainda de haver, a fechar o dia, uma banda com uma fórmula comercial de sucesso que arrasta milhares em qualquer contexto – Os Suedish House Mafia –, os espectadores estavam dispersos ou, se diante do palco, faziam-no com o único intuito de aguardar pelo seu momento musical. Consegui, por isso, arrastar-me com facilidade até à grade diante do palco onde, conjuntamente com uma mole apreciável de dilectos seguidores, pude seguir uma hora exacta de um concerto que, para a crítica, foi “frio, para não dizer decepcionante”. Nada mais enganosa esta apreciação, a provar que a crítica especializada avalia as performances por critérios como os gritos da assistência, as palhaçadas dos músicos em palco ou o número de improvisos nos alinhamentos musicais dos discos gravados. Essa não é a essência de Interpol e a verdade é que quem os conhece delirou com um concerto sério, assertivo, muito próximo das canções originais, sempre de recorte fino e delicado, a dar corpo à máxima “what you see is what you get”. Do alinhamento musical, o álbum Antics foi estrela com uma mão cheia de excelentes canções, bem acompanhadas de outras faixas conhecidas de um público devoto e irredutível. Frios e pouco expressivos? Talvez, mas não serão esses atributos marcas de identidade de uma banda que recusa os formatos que tão subitamente transformam astros em estrelas cadentes? De resto, vi Paul Banks sorrir e Kessler a deslizar pelo palco em souplesse enquanto desferia os acordes de Evil, Slow Hands, Heinrich Maneuver ou da inigualável Not Even Jail, o que é para mim indício de que tocavam com prazer para quem os soubesse escutar.


No final já não tinha voz. Mas ainda faltava The National…
Não sei se por se aproximar a hora mais aguardada da maioria dos festivaleiros, se por terem visto Matt Berninger actuar de copo de vinho na mão, a verdade é que o público apareceu em maior número no concerto de The National, tendo sido também mais participativo.
Mas, de novo, senti o concerto como perfeito no lugar errado. Com uma postura em palco mais interactiva e uma set list cuidada, combinando algumas faixas mais populares com outras que funcionaram como testes ao excelente último álbum [não tendo mesmo faltado melodias que convidam ao relaxamento do batimento cardíaco], os The National mostraram que são mais camaleónicos do que os Interpol. Todavia, que concerto pode resultar em absoluto se diante de um público que os conhece de nome, que aplaude nos hiatos de algumas faixas, que conversa para o lado, ou que clama pela banda que vai actuar no momento seguinte?



No encore (frouxamente clamado pelo público, como o próprio Matt fez notar ao microfone), o tom subiu ao som dos inevitáveis Mr. November e Terrible Love, tendo atingido a sua expressão maior quando o próprio vocalista desapareceu por entre a multidão, deixando os seguranças com os nervos em franja.
O Festival terminava aqui, para mim. Já eram quase 2h da manhã e os festivaleiros ávidos de decibéis descontrolados e luzes de discoteca acotovelavam-se para chegarem até junto do palco para o derradeiro concerto. Voltei as costas ao palco; o meu lugar bem lá à frente ficava para todos aqueles que não distinguem bolotas de pérolas.

interpol, slow hands

the national, sorrow

sábado, 6 de agosto de 2011

trilogia a duas mãos

william blake, urizen

I.

as tuas cicatrizes
ainda me soletram o corpo
neste colapso virgem de violinos

o contacto com as sombras
atira-me o olhar sobre a janela
em trilhos de lírios azuis
que a treva silencia

as tuas cicatrizes
ainda me sofismam o corpo
neste contralto virgem de violinos    

o correlato com as sombras   
atina-me o olhar sobre a janela
em  ladrilhos de lírios azuis
que a treva sentencia


II.

do outro lado de mim
há canteiros secos
vozes mortas
copos e lábios inebriados
como índicos sem oriente

tudo é refluxo de vento
sem tempo e alento

do outro lado de mim
há candeeiros cegos
vozes tortas
copos e lábios incendiados
como imagens  sem oriente

tudo é rajada de vento     
sem templo e acento


III.

no fundo de rostos inexistentes
deponho as pálpebras
sem medo da erosão:
quero eternizar este mito
em rimas febris de cal branco

mas, mesmo em verso,
continuo sem saber
onde esconder-me

no filme de rostos inexistentes
decomponho as pálpebras
sem medo de expressão:
quero edificar este mito         
em rimas ardis de sal brando

mas, mesmo em verso,
continuo sem saber
onde exorcizar-me

por cris de souza & jorge pimenta

rodrigo leão, ruínas

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

etiquetas XV

k. steppenwolf


“Então até breve, Fernando, gostei de o ver, E eu a si, Ricardo, Não sei se posso desejar-lhe um feliz ano novo, Deseje, deseje, não me fará mal nenhum, tudo são palavras, como sabe, Feliz ano novo, Fernando, Feliz ano novo, Ricardo.”

José Saramago, O Ano da Morte de Ricardo Reis


I. modalizações de voz

i. toda a escrita revela
e quase tudo esconde.

ii. as palavras não são o que aprendemos
mas tudo o que [não] conseguimos dizer.

iii. todos os hiatos invisíveis
são o que mais delicadamente nos define
até porque tudo o que revela é incompleto.

k. steppenwolf

tecido boreal
dedicado à minha amiga cecília romeu
do blogue http://anaceciliaromeu.blogspot.com/

alfabetos sem gramática e decifração
agitam o oceano
enquanto a voz desprende
limos talhados com escopo e memória.

em vigília espantam feras
e tocam a cassiopeia
porque as estrelas que cruzam os desertos
nunca são o que nos separa dos homens.


the smiths, there is a light that never goes out