sexta-feira, 30 de março de 2012

a humanidade no singular – ou todos os plurais de um só homem


Eu sou capaz de lançar um grito para dentro de mim, que arranca árvores pelas raízes, que explode veias em todos os corpos, que trespassa o mundo. Eu sou capaz de correr através desse grito, à sua velocidade, contra tudo o que avança para deter-me…
José Luís Peixoto, Cemitério de Pianos


fotografia de jorge pimenta


são eles, os objetos, e talvez a sua alma
quem o persegue
em todas as madrugadas.
às escuras,
mordem-lhe os dedos
com cerejas e pão
e cospem a terra
com que alimenta cada escalada e precipício.

são eles, os objetos, e talvez a sua alma
quem sobe as escadas,
com fome de cães.
passo sobre passo,
atiram sílabas imundas ao chão
enquanto o olhar verga
sobre as vértebras
de sonhos e sonos sem corpo.

detêm-se à cabeceira da cama
a devorar o tempo de cada fotografia,
roída,
a acariciar gavetas,
por entre alfazema e roupa interior mal dobrada.

do lado de dentro,
o animal louco
sonha com árvores estreitas
de pétalas nas raízes
para cada uma das suas máscaras iluminadas.

do lado de fora
são eles, os objetos, e toda a sua alma
a arrotar em cada gomo arrancado
à romã da sua boca.

mais tarde – tarde de mais:
já nem o nome lhe cabe no beijo.

laura veirs, wrecking

sexta-feira, 23 de março de 2012

panorâmica sob dois efeitos


Não me sei conformar.
E saio, antes de entrar,
De cada paraíso

Miguel Torga, Letreiro [in Orfeu Rebelde]

Fotografia de Jorge Pimenta


o dia punge temores
diante da opulência
da poesia

apenas loucuras
intermitentes
como se o velho que esqueceu o nome
ainda desejasse o olhar da medusa.

jurei incendiar a voz
e cobrir de fogo os lábios
mas o beijo lírico acaba sempre
mirrado na boca do tempo
nas divisas da voz e do silêncio

ressuscitei orfeu
adivinhei-me horizonte e lira
mas perdi-me em covas vazias
porque só a palavra acentua a mudez
e reinventa a eternidade:

que morte dispensa
a mão-milagre?
que fotografia
alonga o rosto para além do tempo?
que imagem vaza
pela borda da moldura?

tanto eu quis… 
quis ser poeta
poema
palavra
quis colher o tempo
e acordar o corpo
quis que as raízes do meu sangue
fossem pena e tinta
quis que nos delírios do verso principal
toda imagística
fosse máquina sem tempo

afinal só aos poetas nascem miradouros no olhar.

(Joelma B. & J. Pimenta)

http://transfiguracoes.blogspot.pt/ 

lissie's heart murmur, warpaint

sexta-feira, 16 de março de 2012

estante de papel: bocas e lábios para glossários átonos


Klaus tinha os lábios pretos, como se falasse outra língua. […].
São palavras pretas. Queimam os lábios.
Gonçalo M. Tavares, Um Homem: Klaus Klump


fotografia de jorge pimenta


uma a uma,
as palavras da boca
esquecem os lábios
e adormecem no precipício
átono do glossário

uma a uma,
secas, pálidas, quase indiferentes
apenas papel
à nascente dos olhares
e ao poente dos amores

é assim a bússola do corpo:
aponta ao fim do mundo
mas perde-se no fundo

é assim o corpo sem bússola:
pressente o tempo
e todas as orquídeas cortadas,
repete as estações das árvores
mas nunca viu as raízes na terra,
cala os nomes e os rostos
quando a pele sangra

são assim o corpo e a bússola:
na solidão dos fins de tarde
inauguram a sombra
e os versos onde nos caíram as mãos

portishead, the rip

sexta-feira, 9 de março de 2012

o fim da rua *

Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto
[...]
ó rodas, ó engrenagem r-r-r-r-r-r eterno!
[...]
Ah, poder exprimir-me todo como uma máquina se exprime!
Ser completo como uma máquina!
Poder ir na vida triunfante como um automóvel último modelo!

Poder ao menos penetrar-me de tudo isto...

Álvaro de Campos, Ode Triunfal


fotografia de jorge pimenta [battersea power station]


hoje há gritos que agitam as árvores,
gritos cinzentos metálicos
em rebentação.
são bocas de fumo a cuspir nevoeiro
enquanto nos portos
barcos de madeira apodrecem em águas
que deixaram de refletir as estrelas.

hoje o homem apaga a voz
enquanto as bocas urbanas
lhe rasgam os ouvidos
em penetrações lascivas
que rebentam os tímpanos e a inocência.
e os gemidos espalham-se pela cidade
cobrindo de gozo sexual
as máquinas de dedos longos sobre o peito.
fala-se baixo
mas as gargantas rangem sempre contra
fuselagens de asas negras
em colisão vírica com a lua sem pão:

camiões sem nome
estátuas de bronze
travagens sem estrada
[o pão caiu ao chão de vez]
cortadores de relva
lâminas acesas
relâmpagos a jato
[demónios incendiários lambem os homens em sevícias escuras]
comboios sanguíneos
automóveis subterrâneos
navios eléctricos
[o inferno mostra-lhes a sua cabeça]
lança-chamas
elevadores a arder
sirenes nubladas
[os grilhões amarram o homem]
o mundo das engrenagens corrupia sobre o palco
arrancando os aplausos a uma cidade
perdida no seu silêncio.
[fim do capítulo].

hoje é o dia:
o girassol menstruado
troca de mundo,
o homem castrado
permanece mudo,
e a cidade em orgia mal iluminada
assiste indiferente
às árvores que nos caem das mãos,
hoje.

* texto revisto e modificado, inédito no viagens de luz e sombra [anteriormente publicado em entre marés, de suzana martins]

fotografia de jorge pimenta [battersea power station]

david bowie, the heart's filthy lesson

sexta-feira, 2 de março de 2012

etiquetas XIX


fotografia de jorge pimenta


I. nudez
há segredos que não desvendamos;
desvendam-nos.


II. utensílio de troca
o [desa]linho da vida:
ser fósforo e lixa em combustão lenta
nos invernos de rosto magro.


III. rastos
silêncio vertical
deitado num pedaço de solidão
com o meu nome gravado nos bolsos.


IV. memória e olvido
1.
entre o corpo e a palavra
habita tudo o que não esqueceremos.

2.
todas as flores murcham
nas mãos que se desprendem do seu passado.


V. como no cinema
[dedicado à minha amiga da poesia [e] da vida laura alberto
http://lauraalbertopossiveldiario.blogspot.com/, a propósito do seu texto balada XIII]

acerta em cheio.
vira o estendal e esmurra o nariz.
sabes que a cor do sangue também salva?



nina simone, wild is the wind