terça-feira, 30 de março de 2010

melancolia

escorre, nua,
a saliva
pelos lábios da cal
onde um dia soletraste
o meu nome.

entre o sopro
e a sílaba
pressinto
o regresso da tua boca
na sombra do beijo.

domingo, 28 de março de 2010

Ana Margarida (10 anos)


máscara

as palavras são silêncios escondidos
em risos, vinho e lábios de cristal fino.
inebrio-me
com os ecos da voz
e os borrões de tinta…


Rise, Eddie Vedder (O.S.T. Into the Wild)

sexta-feira, 26 de março de 2010

Ode Impossível

É o sangue da tua altura
o vulcão que não te deixa desaparecer
ao fundo da paisagem
como se te visse ainda
com o primeiro afecto da nuvem
a pousar no fogo
vejo-te aí
onde constróis os dias da nossa felicidade
sem mim e com todos
os nossos utensílios e memórias
numa caixa de sapatos
na sombra da arrecadação.

Ana Salomé


Red House Painters, Have you Forgotten



quinta-feira, 25 de março de 2010

genoma

saltam da boca aos repelões e despenham-se no silêncio. com os olhos no chão, desprendem os dedos da terra e reerguem-se, aos poucos, na titubiância das linhas. voltam a cair e no silêncio se reextinguem.
de queda em queda, as palavras chegam aos teus olhos e acabam por florir. é que contigo aprendi que o genoma dos afectos nunca se diz...

terça-feira, 23 de março de 2010

flor de café


passo horas esquecido
na chávena de café
que deixaste vazia

pressinto o teu hálito
cobrindo o fundo
como flores de caule curvo
sobre invernos sem raiz

domingo, 21 de março de 2010

Desafio

A Andy, amiga e poeta do blogue “LUA”, lançou-me um desafio que, ao que parece, tem funcionado em cadeia. Trata-se de uma viagem pelos sentidos e seus matizes. Aqui vai:

4 lugares onde comprar:
Não sou um comprador inveterado e muito menos me fidelizo aos lugares. Procuro-os na medida das necessidades e quase sempre são escolhidos em função de circunstâncias muito materialistas (especialmente comodistas :-)): se estiver próximo, é ali que vou. Há, todavia, lugares que não esqueço, sobretudo por povoarem o meu ideário, até porque os associo a viagens, aquilo que mais gosto de fazer.
- Livraria Centésima Página, em Braga: não, não é apenas uma livraria. É um espaço muito especial, onde os aromas do papel se confundem com os do café, do chocolate e de conversas perdidas com gente bonita. Além do mais, associo-a à minha querida Amiga e Poeta Ana Salomé (foi lá que lançou o seu primeiro livro) e a “gigantes”, como, por exemplo, Mia Couto.
- Mercado das Ramblas, em Barcelona: se há sensações que vale a pena experimentar, esta é uma delas. Nada há ali de extraordinário, mas o alinhamento das frutas, dos legumes, das carnes, das flores e a variedade cromática e de aromas permanecem a bailar no cérebro de quem o visita… inevitavelmente… e para sempre.
- Livraria Dillons, em Londres: fará sentido, numa viagem de 4 dias, perder-se uma tarde neste gigantesco livreiro, no coração da capital britânica, onde obras de todos os géneros, línguas e gostos convivem com gente de todo o mundo? Eu achei que sim… Ainda acho que sim.
- Mimo 2, em Braga: confesso que muitas das minhas horas vagas (e quase todo o meu investimento de juventude e meninice) foram consumidas entre miniaturas e kits. Ali, perdia-me entre comboios da Rocco e da Lima, kits da Arcade, Italery, Tamya, Revell (ufa…), reproduções de edifícios da II Guerra Mundial em gesso da verlinden… ali alimentei a paixão pelo modelismo que, hoje, permanece, embora adormecida pelo mau feitio do tempo.

4 cheiros:
- Chocolate (negro, de leite, branco, com passas… até com vinagre, se o houvesse :-)).
- Pele.
- The One, de Dolce & Gabanna.
- Cola líquida (ok, admito, ainda sou muito puto, hihihi).

4 coisas que me fazem sorrir:
- A escrita (em geral) e a Poesia (em particular).
- As pessoas que me são queridas.
- As férias (com muito sol).
- Viagens.

4 blogues a desafiar:
- http://www.lauraalbertopossiveldiario.blogspot.com/
- http://cronicasderobertolima.blogspot.com/
- http://pedroramucio.blogspot.com/
- http://photoscriptos.blogspot.com/

21 de Março - Dia Mundial da Poesia


Fogo Nu
Trago as palavras na voz
sem máscaras
sem sinónimos
muito menos antónimos
apenas signos surdos.
dobram-se sobre mim
num bailado lascivo
que percorre as veias
(que diagonal é aquela
que acende o rastilho das nuvens?),
os seus passos
são linhas curvas riscando a areia
num regresso a um mar
onde o fogo e a tempestade
são apenas presságio.
aguardo que a maré regresse às mãos
e que a água inunde a folha;
na rebentação do corpo
redescubro o que perdi
e perco o que não descobri;
na rebentação da tinta
toco a poesia.

sábado, 20 de março de 2010

as cores do estio

Foto de José Figueira (publicação autorizada)

podia estender-me nos teus lábios
e escalar-te o nome
quem sabe cair dos teus braços
e rasgar a pele
ou até soltar o sangue do coração
e pintar-te o céu da boca de vermelho
podia oferecer-te um verso nu
enquanto trincássemos framboesas
no umbigo do verão

só não sei quem apagou a luz
e deixou o mar às escuras...


Joker’s Daughter, Cake and July

quinta-feira, 18 de março de 2010

metamorfose

estendo as pernas, abro os braços, eriço a pele (o sol queima sempre a tristeza e saúda a lassidão, não é?). fumo um cigarro e escrevo o teu nome na cinza que se espalha sobre os pés. bocejo, tropeço no tédio e, sem bolsos nas calças para guardar o cotão dos dias, olho o mar que explode sob a minha varanda. (oh, hoje o mar parece menos líquido que a minha pele ou o teu olhar). remexo-me no cadeirão de veludo (o tecido está gasto, mas exibe o perfume da tua presença e o vazio da tua ausência; não entendo por que persiste em desenrolar o silêncio do meu corpo... afinal também eu sinto a sua falta. SINTO A TUA FALTA!!! como não entendes?...).
a brisa que corre agasalha-me as mãos e deita-se a meu lado. confesso que não suporto o seu olhar misericordioso ou a sua mão compassiva sobre a minha cabeça, como se eu não mais pudesse voltar a beber vinho sorrindo para a chuva que, morna, aqueça a janela. na imobilidade, invento um rosto de orvalho que desliza até mim. é água apenas... água que não soube acender a fogueira ou asfixiar o ar, água que se perdeu, para sempre, nas raízes labirínticas da terra.
sinto-me com menos tédio, agora (é que a melancolia já trepou pela cal agitando as paredes de pedra de onde chegam naves que, aos tropeções, incendeiam o olhar. para quê o fumo que abandona o corpo? porquê a deserção num horizonte sem linha?).
fecho os olhos e espreito para dentro. tudo mexe, tudo pula, tudo se agita no crepúsculo animal (acho que o meu corpo desaprendeu de amadurecer...). extingue-se a luz e apaga-se a lareira; durmo estendido nos lençóis do fim do dia (bolas, o café acabou nos grãos da noite que agora escorre sobre os objectos que foram teus e que nunca quiseram sentir-me seu).
hoje é o momento de ficar só...
hoje é a hora de atravessar a sombra dos corpos...
hoje é o instante de beber a noite... (sabes que é noite já há tanto tempo? o sol talvez tenha sido raptado pela lua e as estrelas devem ter-se escondido no brilho do erro perfeito, sem mácula, intocável).
hoje é o dia (ou a noite?)!
aguardo a serena metamorfose.
Redescubro Bush, uma banda cujo percurso acompanhei desde a fundação até à extinção. Com ela, tanto de mim nasceu, nuns casos cresceu, noutros morreu mesmo sem ter crescido. Bush. Banda marcante, sim, e porque para mim a música vive nos braços da poesia, convidei-me a um exercício que julgo ter resultado bem: escutar "Letting the Cables Sleep" acompanhado do poema arrepiante de João Negreiros, dito (representado) por si próprio (creiam-me que "Luto Lento", dele, foi o que de melhor li nos últimos anos). Em simultâneo sim. Experimentem por mais estranho que possa parecer. Não consigo parar...









Bush, letting the cables sleep

quarta-feira, 17 de março de 2010

a caixa do mundo

cheias...
terramotos...
desmoronamentos...
(sabes quantos corações estouraram na queda?).

no reverso do mundo
apenas trilhos de ossos
desvelando a caixa de madeira
da cor da dor.
são dedos nos contornos da esperança
como letras dobando o sentido
como o sentido cerzindo a sintaxe

fora: a forca da alma
dentro: apenas tábuas.
guardam as cores do mundo
adiam o infinito da morte,
perdem as mãos
seguram a voz.

mas é a paleta do olhar
o pincel do mundo:
pinta crude nas estrelas
gota a gota
bem lá em cima
(lá onde se esconde o mar).


Rita Redshoes, Dream on Girl

segunda-feira, 15 de março de 2010

por[o] engano

Atracado em terra seca, Ribeira de Mures, Juromenha
Foto de José Figueira (publicação autorizada)

cansei-me de percorrer todos os teus poros inúteis. questiono-me mesmo sobre se a tua pele respira (ou terei sido eu quem perdeu o olfacto nas bebedeiras que apanhei de ti?...). será que a tua existência ainda é a pedra sonora que entoa o cântico do mundo, ou apenas a ressaca que me agarra o sangue, como um dique segura a solidão?
durante uma vida vesti-me com as tuas mãos e sorri com a tua boca, mas, quando chegou o fim do mundo, olhei para o lado e apenas encontrei o mesmo chão (gasto), as mesmas cadeiras (vazias), as mesmas paredes (nuas)... até o tempo parece ter endurecido nos ponteiros da felicidade. a este dejavue falta uma peça: tu.
dei por mim a pensar se terás sido tu quem adormeceu na minha insónia, empurrando-me para uma viagem sem volante e estrada, ou se terei sido eu que me perdi de tanto procurar e de ainda mais querer achar. estarei aí? não consigo refazer-me da dúvida e, sob os pés, as tábuas agarram-me o sangue, como se segurando-o pudessem conter a fome e o desejo que pairam nos carris onde uma composição (que nunca conheci) se dobra sobre o metal fulgente (também, quem lhe mandou acreditar nas guias da viagem?...).
mergulho no rio, despindo a saudade e lavando o corpo dos passos em vielas sujas que marcaram, durante tanto tempo, o compasso. (olha, eu ainda tenho pele!?...).
fui lá; estive lá, mas porque o cântico da água imita os teus suspiros, não consigo sair de lá. não fossem as flores que bordejam as margens cuspirem pétalas de fogo e eu morreria hipotérmico junto à tua boca... como que por engano.

domingo, 14 de março de 2010

Para[-]Peito

A falta de inspiração assusta-me… a escrita também. Mas, aquilo de que realmente fujo é de um pôr-do-sol a arder sobre o papel derretendo os dedos e a tinta sem me perguntar porquê. Com ele descobri o feitiço que vive nas linhas do poema mas foi também com ele que aprendi como se escreve a seco no papel da vida.
Sabes? Mesmo tendo aprendido pela cartilha da mentira, não compreendo por que me tornaste naquele infeliz a quem a morte nem perguntou se estava preparado. É que há mais tempo para morrer do que para viver, como há mais tempo para brilhar do que para anular. E a luz das tuas lanças solares não se extinguiria, mesmo que por detrás de mim apenas viva uma imagem difusa que perdeu o jeito para beijar naquela afonia sensorial que lhe roubara a voz e os lábios.
Desde esse dia, viro-me e reviro-me à procura do rasto vermelho onde outrora alojei a tua fotografia (recordas-te? Estava naquela prateleira branca, mesmo por cima do coração…), mas em vão. Dos lábios… já nem saliva seca. Da voz… já nem um nome.
Dou por mim a pensar que melhor seria agarrar a boca de quem ama por acaso e de quem chama por mim sem fazer caso. E quando o pôr-do-sol me cortasse os pulsos haveria de rir, mas rir-me em desfaçatez, porque as veias há muito estão secas pelo fogo não dos seus braços, mas da saudade. Haveria de pousar os dedos sobre o parapeito (foi aí, de tanto esperar, que rompi o coração…) e acenar-lhe um adeus, enquanto disfarçasse sonolência sobre a linha já escura do oceano.
Regresso ao medo… Diante de mim, a escrita e a desinspiração. Mas, já sem o espectro do ocaso, prossigo. Apesar dos erros e da má caligrafia, não desisto do poema final.



Bush, Inflatable

sábado, 13 de março de 2010

NÓS

Um dia disseste
(sim, tu…)
que o amor nasceu para sermos imitados
(a verdade dorme sempre contigo).

E quando o pronome voltar a escrever-se no singular
saberás dizer-me
(sim, tu…)
como preencher o vazio gramatical?


Sente-se… (Cais do Ginjal)
Foto de José Figueira (publicação autorizada)

Tenho na agulha do meu gira-discos uns quantos nomes que vão atravessando o tempo com a desfaçatez de quem está acima de qualquer ruga ou linha indesejada. Rodrigo Leão (que segui já desde os tempos dos inimitáveis Sétima Legião ou, mais recentemente, dos Madredeus) é, desde o primeiro álbum, um dos mais escutados. Não que esteja em condições de avançar com uma fundamentação muito técnica, do ponto de vista musical, para justificar esta opção; mais que isso, resgato argumentos que, na minha opinião, são as fundações para que um edifício possa vir a tornar-se um postal turístico, um discurso uma referência intelectual ou uma música o som da imortalidade: as sensações. Ruínas, Ave Mundi Luminar, Carpe Diem e mais recentemente Cathy são apenas algumas das faixas que me entram na corrente sanguínea convidando-me a regressar aos serões de teatro, às férias que não se esquecem, àquele livro que vive connosco ou ao texto que achámos que nunca seríamos capazes de escrever. Cathy é, hoje, mais que qualquer outra, uma canção que permite a convergência de todas as sensações que distinguem os homens dos deuses, porque enquanto estes apenas sabem rir, triunfar e viver, o Homem sabe rir e chorar, ganhar e perder, mas, sobretudo, imortalizar-se vivendo e morrendo.


Rodrigo Leão, Cathy (with Neil Hannon)

Cathy
it’s times like these I wish I wrote like you
you seem to bend the words to suit your needs
you melt my heart with pure imagery
but I don’t know how to say it better
but darling since I met I haven’t been the same
[…] you’re the one I care for and that will never change…
Cathy
[…]
Cathy can you help me please
you put these things more poetically than me
I sound a howl of fields but it’s much harder when it’s so real
and I don’t know how to make it clearer
but honey when I’m near you it’s like I’m in a dream
and I don’t know how to melt the stormy weather
but just to be together is good enough for me
Cathy

quarta-feira, 10 de março de 2010

toda a gente... ninguém...

dá-me um abraço como se fosse o último, estende-me a rede com que evite a queda livre, segura-me os ossos que estalam nas tábuas do coração, segreda-me o código com que dizer a verdade, agarra-me as mãos que perdi atrás de uma parede qualquer, sacode-me os ombros presos ao gelo da voz, atira-me as palavras que imitam o silêncio, ensina-me a escrever para saber morrer, rasga-me o ventre de fera hibernante, amarrota o papel escrito pela mão que mata, beija-me a boca sem palato.
talvez assim o meu sangue volte a ser vermelho e as ideias saiam de trás da sebe do coração e eu deixe de procurar o que caiu ao chão, o que atirei ao ar, o que rolou para o canto, o que se escondeu atrás de ti (é que, de tanto procurar... já tão pouco sei de mim...).
talvez assim o meu mundo volte a ser toda a gente.

segunda-feira, 8 de março de 2010


Portishead, The RIP

sábado, 6 de março de 2010

Beco a Preto e Branco, Lisboa
Foto de José Figueira (publicação autorizada)

Cárie

Esta noite desci ao inferno.
Deixaste-me sobre o peito o mapa desenhado a compasso e transferidor (conheces-me... sabes bem que a orientação nunca foi o meu forte...). Sabes que estranhei a tua mão? Sempre tão solta, livre (e só por isso conseguiste habitar-me a boca até ao dia em que o hálito apodreceu juntamente com a cárie onde escondia o que te não devia mostrar)... E agora? Firme, segura, geométrica, como a auto-estrada que liga corações de pedra aos campos do (im)possível.
Alguém tem um cigarro?
Não apanhei um táxi nem fui de avião. Prefiro esgotar os músculos na brisa que deixará de correr naquele vale onde talvez te venha a encontrar (afinal, tenho tempo para arder).
Obrigado! Tem lume?
Ladeando o asfalto, figuras recortam o horizonte; seguem curvas, lentas, moribundas... os seus rostos mais jovens que o meu, mas o olhar é o de alguém que um dia soube fazer a vindima do sangue do corpo; e a íris? Verde, o verde de uma árvore que cresce sobre as folhas como se o canto da cotovia que nela espreita anunciasse o fim da história.
Que frio... Não consigo parar de tiritar... Segura-me as mãos?...
O portão de aço estende-se diante de mim. Está aberto e os beijos de fogo que consomem os gritos comprimem-me os lábios, fazendo-me esquecer de como se faz para sorrir.
Meu Deus, que frio... Aquece-me as mãos?
Encimando os lancetes, a placa "almas cariadas" (desaprendi de escrever - ensinaste-me que o essencial não se escreve com tinta, mas com lágrimas, por que haveria de ainda o saber? -, mas ainda consigo ler).
Antes de entrar, grito com chama nos pulmões e gelo na voz dêem-me um complexo, arranje-se um sentimento de culpa, procurem um trauma ou uma frustração... e um devaneio, já não há?... (ufa, como me sinto melhor).
Estico as pernas da camisa, sacudo as tuas migalhas de pele e sopro dois cabelos longos que teimam em resistir no alto do ombro esquerdo. Levanto a cabeça e rio. Raios, não há ninguém que me arranje outro cigarro? Vou enganar o pobre diabo: como se faz para morrer se as balas são sempre flores numa primavera sem idade?

quinta-feira, 4 de março de 2010

Gare sem Nome

Março. Caiu o frio no silêncio.
O meu abrigo passou a ser o barulho dos outros – sei-o eu; não o imaginam eles. Mas só nesta semi-inconsciência consigo esconder-me, ou acabaria asfixiado no oxigénio das mãos nas costas e das palavras moribundas que despedem, lentamente, “as melhoras”, ou “deixe lá, vai ver que não é nada”.
Por mais que grite ou esbraceje, já não há como aquecer a humidade do corpo ou sentir o cheiro de flores secas na terra revolvida.
Ergo a gola do casaco e arrasto o tempo até à estação de caminho-de-ferro. São apenas dois passos e uns quantos cigarros mal fumados a distância que me separa de um destino que não sei por que escolhi…
Diante de mim, luzes baças de candeeiros sem dono recortam as linhas alongadas na noite que adormecera na gare.
Dentro de mim, na garganta, carris enferrujados prenunciam viagens a vapor que esbarram em horizontes negros, como se engolidos pelo fumo espesso desperdiçado sobre o tecto do mundo. Uns degraus mais abaixo, o peito despede-se de pessoas carregando sacos no afã de uma viagem que receiam ter de cumprir. No coração, apenas o relógio com ponteiros de prata onde o tempo parou, à espera da locomotiva que se perdeu na encruzilhada férrea do teu nome.
E o muro de carne que me impede de entrar perde-me na sombra acidulada com que se constrói a casa da melancolia.


Nick Cave

terça-feira, 2 de março de 2010

Quis, um dia,
banhar-me na tua saliva
e engolir a água onde escondes o olhar
mas
as lágrimas jaziam no colo
e os lábios há muito estavam desabitados
como se o sangue nunca tivesse lavado as rochas.

Resigno-me, hoje,
a preencher a noite
com pétalas que se desprendem dos dedos
esperando que um dia
o sol se deite dentro de mim
depois de adormecer no horizonte.

Talvez seja melhor
secar o rio
e encolher o seu leito;
é que deixei de saber sonhar…
(a noite fá-lo por mim…).