quinta-feira, 29 de julho de 2010

dobra(dura)

wassily kandinsky

era ali
entre o rosto e o mito
que escrevia as suas cartas
com velas nos pulsos
por onde escorria
a seiva negra da solidão

o amor roubou-lhe o alfabeto
e a mão apodreceu
sobre o tecido por terminar

era ali
entre o posto e o dito
que envelhecia as suas cartas
com celas nos punhos
por onde estarrecia
a soma negra da solidão

o amor roubou-lhe o amuleto
e o chão anoiteceu
sobre o terreno por trovejar

(Cris de Souza & Jorge Pimenta)

terça-feira, 27 de julho de 2010

álcool

duy huynh

volto-me para trás.

o vinho morre brando
na raiz do sol,
apagando copos de cinza
órfãos dos teus lábios.

a colheita de um regresso
estala o vidro,
por onde escorrem coágulos de estrelas
que incendeiam a boca.

gasta-se o palato e a lucidez;
solta-se a raiva
escondida na respiração das marés.

sexta-feira, 23 de julho de 2010

no quarto IV

Fotografia de Jorge Molder

cambaleio pelo quarto
nauseado de escuridão.

a tua pele de âmbar
e as carícias de violino
agonizam agora pelo chão
como vestuário gasto ou perdido.

atravesso-o
perante a indiferença dos deuses
e o sarcasmo dos homens.

chovo-me persigo-me escrevo-me
mas o vento continua a bater na tinta
antes de secar a mão.

liberto a memória dos dias
como um peixe percorre o corpo menstruado
de vénus sem olimpo.
falhei a previsão na meteorologia do amor
e todavia
foi o tempo
é o vento
(será o momento)
eu sei-o...

resigno-me a acreditar
que as maçãs amadurecem fora da árvore...
ainda assim, inteiras.

terça-feira, 20 de julho de 2010

negativo fotográfico

Fotografia de José Figueira

quieto permaneço
sobre os varandins da memória

o peso dos rostos
verga-se à densidade dos nomes
reacendendo imagens
que ardem no pó da vidraça.

e se um dia eu adormecer
com estrelas na respiração
e as mãos pousadas nas cerejas
que pintaram
em tempos
os teus lábios
ainda te recordarás de mim?

no intervalo da espera
abraço o verso
que ergue as raízes
acima da saudade.




rodrigo leão, this light holds so many colors

sexta-feira, 16 de julho de 2010

mil e um poemas

o poeta e amigo assis que a todos toca com a sua sensibilidade verbal e paraverbal acaba de me deixar sem reacção, com o poema "balada de outros e tantos mares". agradeço-lhe com o que as palavras nunca conseguem (porque imperfeitas e insuficientes), mas que sei que ambos sentimos quando nos cruzamos neste universo a que chamamos poesia.
apenas uma advertência: ele deixou-me despido, absolutamente, naquele texto... ainda procuro as roupas um pouco por todo o lado... felizmente, e como diz jorge sousa braga:
"quanto mais me dispo
menos nu
me sinto"
(streap-tease)

http://mileumpoemas.blogspot.com/

quinta-feira, 15 de julho de 2010

arco-íris

Fotografia de José Figueira

cortei os pulsos para percorrer a estrada do sangue
plantei uma árvore para perder a esperança
inaugurei o sol para dançar na sombra
mordi os frutos para deixar escorrer a noite
esventrei o céu para morrer de espanto.

hoje
o meu arco-íris não é mais
que uma vaga recordação.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

cassandra

as ondas descem sobre o olhar.

se o iodo e o sargaço
se juntarem em redor do teu nome,
alguma vez serei apenas a água
com que inventes novos rios
e correntes sem foz?

e se as veias estremecerem
num bailado sanguíneo
acendendo rostos do passado
(continuo a achar que a morte
é apenas as palavras que não se esquecem)
recordar-te-ás que já fui o fogo
que queimava, lentamente,
o lençol de espinhos onde dormias todas as noites?

entre as dúvidas e as nunca certezas,
o corpo inclina-se para a sombra
perscrutando a profecia órfã:
na vaga do olhar
a vida executada.


air, cherry blossom girl

sexta-feira, 9 de julho de 2010

surrealidades

O fundamento de toda a experiência tem de estar fora da experiência.
E, assim, para a Poesia, o Oásis e o Deserto são as tenazes que a geram, já que a realidade não se baseia só na substância das coisas, mas também no seu caudal e relacionalidade. Tudo se define pelo diferente. E para a Ideia da Totalidade de uma Vida Única nós acreditamos na conjugação futura desses dois estados, na aparência tão contraditórios, que são o sonho e a realidade. Acreditamos numa Realidade Absoluta, numa SURREALIDADE se é lícito dizer-se assim.”
Mário Cesariny, Primavera Autónoma das Estradas


- acabo de perceber como surrealisticamente não sou surrealista: visto-me e disponho-me, todos os dias, com a experiência a servir-me de espelho…
- pois, eu sempre percebi que sou surrealista, visto a roupa que não me serve e passeio nesta fogueira das vaidades.
- não te serve… mas fica-te bem! quanto à fogueira: deixa arder…
- deita-lhe gasóleo! até porque as cruzetas se fizeram para albergar cadáveres esquisitos, queimados…


a verdadeira experiência surrealista (porque não vive apenas de si mesma, mas das intersecções que proporciona) é poder efabular sobre trivialidades absolutas e essencialidades relativas (na verdade, e sem pruridos linguísticos ou conceptuais, sobre tudo e sobre nada) com a amiga e poeta laura alberto do blogue im.possibilidade, seja no cosmopolita e variegado porto, seja numa popularmente pitoresca freamunde…


terça-feira, 6 de julho de 2010

m(ot)im

caros amigos, julgo que o meu blogue se amotinou. tenho recebido comentários que aceito e desaparecem, outros que eu próprio faço e que nunca apareceram... pode haver um qualquer conflito com os mecanismos de funcionamento do próprio blogue. justamente para precaver a situação (e, já agora, para despistar qualquer outra avaria mais séria), republico aqui o texto.
um abraço e um agradecimento a todos quantos por cá passaram e deixaram a sua marca... em tinta transparente, mas com o coração sempre presente.
jorge

vénus de willendorf

a vida abre-se como botões de rosa
em jardins alinhados
em látex e formol.
coxas femininas anunciam o destino
no v desenhado sobre marquesas,
enquanto o deus nomeado pelos homens
converte planos de felicidade
numa criação exclusiva das suas mãos.
tudo é luz, milagre, constelação… à espera da noite.
e o sangue que rega os corpos sem vida
acende também o relâmpago da existência
naquele rectângulo asséptico
de uma ilusão transparente.

os dias correm
sob patas rutilantes
que latejam nas têmporas do quotidiano:
são tentáculos a irromper pelas paredes húmidas
sobre a cal que o artífice da vida
jurou envolver no meu corpo.
do estio prometido
sobra o calor do inferno;
da brisa anunciada
apenas as trevas do inverno.

e no vaivém dos dias
a pele arde na fornalha da locomotiva
que cospe os derradeiros bagos de céu.

pergunto-me por ele,
o guardador de rebanhos
que engana as reses brancas
e abandona as negras
umas e outras antes de saberem morrer.

a resposta?
...

deixei de saber esperar;
inicio a descida
ao lado do pássaro
que me despiu as asas.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

m(ot)im

vénus de willenforf

m(ot)im

a vida abre-se como botões de rosa
em jardins alinhados
em látex e formol.
coxas femininas anunciam o destino
no v desenhado sobre marquesas,
enquanto o deus nomeado pelos homens
converte planos de felicidade
numa criação exclusiva das suas mãos.
tudo é luz, milagre, constelação… à espera da noite.
e o sangue que rega os corpos sem vida
acende também o relâmpago da existência
naquele rectângulo asséptico
de uma ilusão transparente.

os dias correm
sob patas rutilantes
que latejam nas têmporas do quotidiano:
são tentáculos a irromper pelas paredes húmidas
sobre a cal que o artífice da vida
jurou envolver no meu corpo.
do estio prometido
sobra o calor do inferno;
da brisa anunciada
apenas as trevas do inverno.

e no vaivém dos dias
a pele arde na fornalha da locomotiva
que cospe os derradeiros bagos de céu.

pergunto-me por ele,
o guardador de rebanhos
que engana as reses brancas
e abandona as negras
umas e outras antes de saberem morrer.

a resposta?
...

deixei de saber esperar;
inicio a descida
ao lado do pássaro
que me despiu as asas.


Alcest, écailles de lune – part 1

sexta-feira, 2 de julho de 2010

dinamite


as mãos dormitam nos bolsos embalando os olhos que incham sob a ameaça de revólveres azuis com aroma a alfazema. pelo sangue, travestis enrolam o sexo e mordem a carne que, espasmo após espasmo, entumece, galga os ossos, arranha a pele e reinventa o silêncio.
ao seu redor, pressente vozes sem boca e ecos sem memória. está só. ele e o gato vadio que esgravata o lixo. depois é o pátio, um insecto ruidoso e o automóvel que chia a alta velocidade. tudo passa… todos fogem… apenas ele permanece e de novo só. outra vez o jogo do silêncio…
nem a noite morna ou a beata esquecida nos lábios lhe estendem a mão e o olhar. só… como o mais vadio dos cães ou dos gatos que embriagam a lucidez dos homens.
boceja… inclina-se sobre o colchão do silêncio. os lençóis são o passado, cada vez mais sujo, cada vez mais roto. adormece no trilho da memória. a esperança há já muito que lhe dinamitou o peito.



cat power, i found a reason