quarta-feira, 30 de maio de 2012

nona sinfonia


Beti Timm


primeiro ato em dó menor

durmo com a nudez dos gatos
a esconder pincéis, cores e arestas
sob a tela da tua porta
a luz ainda acamada
porque há presenças  abismadas 
no retrato das palavras
que acariciam o beijo.

e encanto-me diante da tinta
encanto-me diante do mote 
como se as fadas fizessem miragens
com as tuas mãos
e em cada pintura soubesse
mais do que uma vidra.

durmo com a mudez dos gatos
a esconder papéis, cartas e promessas
sob o tapete da tua porta.
a luz ainda apagada
porque há presenças adivinhadas
no rasto das palavras
que anunciam o beijo.

e espanto-me diante da vida
espanto-me diante da morte
como se as fadas fizessem milagres
com as tuas mãos
e em cada poema coubesse
mais do que uma vida.



segundo ato em si maior

encosto o rosto ao lençol vazio
e ao desabitado da minha cabeça
acesa entre as folhagens

e todo eu sou ramos,
e todo eu sou raios,
árvores em crepitação
a arfar debaixo da respiração sem raízes
enquanto a terra transpira seus vernizes

como se as engrenagens do amor
fossem eternas pelo tempo fora
na desforra dos arvorados instantes

não, não são,
apenas duas ervas daninhas a enlouquecer
ao parecer que se alinham 
em cada palmo de palavra
na trincheira dos amantes.

enquanto a poesia se move da noite prò dia 
as paredes permanecem brancas e frias.




terça-feira, 22 de maio de 2012

poema solitário para fugas e quase-raízes


Amo-te, como quem te sabe, mas não acredita e não te vê morrer
Ira Buscacio


fotografia de jorge pimenta


partiste no inverno
com a saia azul que perdi para o vento,
purpurinas no céu da boca
com luminescências, candeias,
e três pingos de lágrima no rosto.

no descampado das tuas mãos
a língua seca
em carícias de boca esquecida,
outrora mel seiva e sol,
anca furibunda
a acender rastilhos e poemas.

não, não era preciso termos ido tão longe
se toda a geografia é corpo em combustão
e veneno a germinar no ocaso das entranhas
à espera que o amor apodreça por dentro.

partiste no inverno
com a saia azul que perdi para o vento.
eu?
rosto inclinado, a franja sobre os olhos,
apenas exílio no aroma amargo deste fim de tarde.


our broken garden, when your blackening shows

sexta-feira, 18 de maio de 2012

Jorge e a italiana
A novela do condomínio está ao rubro! As movimentações junto à porta da bela italiana são, hoje, mais do que os dedos possam contar. Desta feita, uma visita inesperada, um pedido, olhares lânguidos e silêncios comprometedores. Ninguém, mas ninguém, mesmo, resiste aos encantos de Sophia. Desta vez, bateu-me à porta e não consegui dizer "não" ao seu pedido. Confira no blogue da surpreendentemente criativa Ana Cecília Romeu:

Canfranc: A voz e o silêncio


The sun is far away
it goes in circles
someone dies
someone lives

Ulver, Eos




Poderia ser a fotografia de um filme de espionagem, rodado numa paisagem da alta montanha, onde o silêncio é o manto que liga a voz do passado à do presente. A bruma despe a vertigem e pousa, lentamente, na humidade do vale, onde um palácio de linhas clássicas se estende ao longo de mais de 200 metros de memórias, agora estilhaçadas como as janelas e as portas que lhe alimentam a sede de luz e cor. Em seu redor, trilhos ferroviários, composições abandonadas, pavilhões devolutos e maquinaria a apodrecer na humidade dos Pirenéus. Uma cidade fantasma, eis o que a gare e o grande hotel de Canfranc são, hoje. Ainda assim, das suas paredes escorre História, pactos secretos, negócios escuros que revolvem os bolsos de uma das fases mais hediondas da História da humanidade: o nazismo.
Já território espanhol, paredes-meias com a fronteira francesa, Canfranc foi, entre 1942 e 1945, sede de alguns dos movimentos mais secretos vividos em pleno conflito mundial. Para além de ponto estratégico para a mudança de bitola dos comboios espanhóis para os franceses, esta gare fotografou, ainda, durante o período da II Guerra Mundial, a vida quotidiana dos agentes secretos e militares alemães, registou ações de fuga de judeus clandestinos para Espanha, Portugal e além-mar, e testemunhou, inclusive, a evasão de nazis que procuravam escapar a um destino judicial certo logo após o termo do conflito bélico.


Ao tempo, Espanha gozava de um estatuto de pretensa parcialidade, ainda que o comprometimento com os alemães, poucos anos antes, na Guerra Civil Espanhola, onde se posicionaram ao lado de Franco, selando um estatuto dúbio. Foi ao ostentar essa capa de mentira que Canfranc funcionou como pivô de trocas comerciais entre Portugal-Espanha-Alemanha-Suíça, de entre as quais quase uma centena de toneladas de ouro nazi pilhado aos judeus que, um pouco por toda a Europa ocupada, agonizavam em campos de concentração. A presente alegação tornou-se tão mais legítima quanto se sabe, hoje, que foram os próprios alemães quem controlou a alfândega internacional de Canfranc durante o período da Guerra; acrescem os documentos encontrados por Jonathan Diaz, na gare, em 2002, entretanto divulgados, e que reiteram a tese da rota do ouro em Canfranc: toneladas de ouro nazi chegavam a Canfranc por comboio, provenientes da Alemanha, da Holanda e da Bélgica, com destino a Espanha e Portugal, que ora os compravam, ora os recebiam em troca de favores que alimentavam a máquina de guerra nazi (por exemplo, o envio espanhol de volfrâmio extraído de minas galegas, matéria indispensável para a defesa dos tanques alemães); daí eram dispostos em camiões que levariam a mercadoria até Madrid e Lisboa.


Mais de 60 anos volvidos sobre o frenesim militar, pautado pelo secretismo e glamour, a gare e o hotel de Canfranc fecharam a boca para sempre. Já não há militares, movimentações ferroviárias, jantares festivos no grande hotel, ou documentos secretos guardados nas gavetas; apenas o esqueleto, bem vivo, do que restou de toda a operação da vergonha e que os historiadores, os caçadores de fotografias ou os mais curiosos perseguem como um tesouro a não desperdiçar. Até porque há silêncios que dizem e os lugares, esses, respiram bem para além da sua materialidade.















Ulver, Eos

sábado, 5 de maio de 2012

Canção para o alfabeto dos dias suspensos: entre desejos e distâncias


cuando pasen los años
y yo solo sea un hombre que amó.
un ser que se detuvo un instante frente a tus lábios.
un pobre hombre cansado de andar por los jardines,
¿donde estarás tu?

İdonde estarás oh hija de mis besos!

Nicanor Parra, Cartas a una desconocida



fotografia de jorge pimenta


os dias adormeciam-nos no olhar
enquanto nus desafiávamos a matéria
que anuncia o tempo e o espaço.
sim, eu sei,
nunca fomos videntes
e a única coisa que adivinhámos
tinha a forma do corpo
e o sabor das nossas línguas,
mas eu sentia que podia ser contigo
do lado de dentro do miradouro
com que afugentas pardais
alimentas madrugadas
e rezas ao deus que dorme
no regaço da nossa sombra.

podia ter sido aqui,
podia ter sido ontem,
podia ter sido sempre e em todos os lugares
de crescimento fértil
e de água em movimento rápido
pelos canais do sangue.
e nessa gravitação líquida,
entrámos, através do sonho,
no novelo do tempo:

só a cama dos homens,
com trevos da sorte sobre a pele,
incendeia a vida inteira
sem deixar rasto no beijo de papel.


rodrigo leão, cathy