quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

elegia [ao ano velho]; ode [ao novo ano]

                                jean sebastien monzani, the exception

eis-nos chegados à derradeira fila.
365 passos e tantas cabeças a farejar
um céu feito de carne [como os cães vadios]
e o silêncio de estrelas [como os homens].
a meio caminho, anéis de tempestade
enrolam marés e praias
onde os rostos são gaivotas de ferro
que vomitam fumo sobre escarpas de pele
e fazem ninho nos sonhos da soberba agonia.

pela estrada
desci barragens e subi promontórios,
chovi mágoas e acendi fogueiras
deitei-me sobre a terra e corri à beira-mar
naveguei artérias e perdi corações
anoiteci ao meio-dia e enganei primaveras.
e, no final, o círculo do tempo
encosta o crepúsculo à aurora
como se o ontem e o amanhã se ligassem
pelo batom de lábios redondos
em permanente incêndio.

e agora?
é a hora.
recitemos a primeira luz do dia
na aparência do seu limite.

 
the smiths, please please please let me get what i want

a todos os meus amigos, que o novo ano ofereça a materialização plena do caminho a que morrissey aponta nesta imortal canção dos the smiths: please, please, please, let me get what i want.
um abraço!

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Noite de Consoada


                                            Ana Margarida

A mão fria da noite caíra já sobre a cidade. Não admira, é Dezembro e basta que soem as cinco badaladas na torre da igreja para os corações urbanos passarem a rufar alvoroçadamente. É que se a noite é grande, o dia mal chega para cumprir o ritual sem falhas. E há ainda tanto por fazer… a ceia, farta e trabalhosa, os brinquedos das crianças por comprar, a esmola aos pobres da caridade… ah, o bolo-rei, meu Deus, e o bolo-rei!?...
Sozinho, em casa, não posso perder a magia da noite branca que, presume-se, torna os seres humanos mais próximos da ideia original do Criador!
Levanto-me lentamente da modorra do sofá, enfio os braços nas mangas do sobretudo, ajeito o cachecol que comprei ali mesmo, nas barracas de rua, numa manhã tão fria quanto esta noite de consoada, e bato à porta da cidade. Recebem-me miríades de reflexos projectados obliquamente desenhando céus de luzes que escondem as estrelas; coros de crianças entoam cantares que todos um dia aprendemos junto à lareira, mas agora mais ritmados e amplificados por gargantas electrónicas que se espalham ao longo do presépio animado. Aqui e acolá, vultos apressados tropeçam em sacos coloridos de onde pendem, molemente, fitas e embrulhos fechados a correr, creio mesmo que sem ver… sem me ver…
Dentro de mim, a noite era silenciosa, escura e fria. Noite de Inverno, já se vê. Nem mesmo a companhia dos gatos que, como eu, vagueiam pelas artérias nuas, em busca de um sorriso esquecido, conseguem revelar o negativo fotográfico que, qual parasita, se alojara no meu coração. Do lado de fora, prossegue a sinfonia de talheres que estilhaçam os vidros e gargalhadas exuberantes que silenciam os gemidos da noite.
Aconchego o cachecol ao pescoço, subo a gola do sobretudo, deito o olhar ao chão e tomo o caminho de casa. A noite está quase a passar… Quando é o Natal?...

24 de Dezembro de 2008


A todos os amigos que se fazem próximos pelos blogues deixo um abraço com os dedos longos da neve quente que sempre se faz doce na lareira do coração.


Feliz Natal e até breve!


The Pogues & Kirsty Maccoll, Fairytale of New York

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

credo

                                 jean sebastien monzani

quem és tu?
trazes a boca perdida na insónia
e nem o tabaco e os dedos amarelos te sossegam.
perdeste os frutos do estio
[como foi possível anoitecer os risos brandos
em torno dos brincos de cereja?]
e com ele todo o verão.

não, não esqueço,
mesmo que apenas fantasmas de sangue.
não, não morrem
as imagens da terra fértil
em que o beijo era o pão
e o desejo o farol da loucura.

e mesmo que um dia adormeça sobre a cama de relva
que fotografa o passado
não deixarei de sonhar
com os arcos de pele contornando as estrelas
nesta falésia de perfume adormecido.

tudo o mais
é orvalho sobre uma folha indecisa
que o vento desprendeu da árvore.
por debaixo da ramagem continua a crepitar o fogo.


the cure, a thousand hours

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

etiquetas IX

                                            robert frank, new mexico, 1955
I. arbítrio
é a pulsação da terra
deitada sobre a pedra cinzenta
agitando a desilusão.
o amor assim se ganha e assim se perde:
na punção das cordas por atar
e no olhar de aves que perderam o voo.
que mais recear?


II. urgência
vou ligeiro
em pezinhos de céu
e por chão de estrelas

[não vão os derradeiros sonhos
esconder-se assim
não vás tu
escarnecer de mim]


III. adversativa
mas
que corrente de pedra
é essa que te navega o sangue
agitando as veias
em sístoles e diástoles
de hesitação feminina?


IV. os degraus da voz
cobre-me com o lençol de rosas
atira-me à terra que alumia.



jim morrison, a feast of friends

domingo, 12 de dezembro de 2010

Adiadas Dunas: Poesia à solta na Casa-Museu Nogueira da Silva

Decorreu ontem, na Casa-Museu Nogueira da Silva, em Braga, o lançamento do aguardado livro de poesia do poeta galego Francisco Mariño, pela mão da Editora Calidum.
Natural de A Corunha, Mariño é professor de Literatura Alemã na Universidade de Valladolid, mantendo uma produção na área a vários títulos notável. Adiadas Dunas é, todavia, a sua primeira incursão no domínio da produção poética.
Coube ao Mestre e amigo Henrique Barroso e a mim próprio a responsabilidade de, primeiro, e a duas mãos, escrever o prefácio para, ontem, apresentar a obra na cerimónia de lançamento.


Em Adiadas Dunas emergem um conjunto de seis partes, cada uma delas exercício de revisitação de lugares de primordialidade pessoal:
1. O lugar do reencontro com um tempo e um espaço que querem saltar as areias da ampulheta para se inscreverem, eles mesmos, no tempo e no espaço. Somos, assim, convidados a percorrer as galerias “do tempo esmorecido”, um lugar líquido, instável e refractário, onde as chuvas e as águas do mar escorrem de um passado suspenso na distância da irreversível memória – Chuvias Idas, Mares que Fuxem.
2. O lugar onde as águas do mar contornam os areais instáveis da alma, à esquina da razão, perdendo o sal na memória de um “tu” plural – Areal.
3. O lugar onde a noite, com braços frios e dedos longos, acolhe o coração no fogo-fátuo do desamparo – Noitebra.
4. O lugar da recuperação de um tempo de ausência e abandono emocionais que a memória persiste em não conjurar; é aí que as folhas outrora viçosas acabam por mirrar, definhar e adormecer, embaladas pelas mãos de Morfeu – De Wiemar.
5. O lugar do aceno demorado aos rostos que os anjos brancos ceifam e distendem num jardim onde o sol queima a saudade e a chuva rega as flores. É o tempo da homenagem àqueles que partem, mas, porque permanecem vivos na memória, jamais o fazem para longe – Arborado.
6. O lugar onde o eu poético procura libertar-se do lastro da memória e, com um brilho agitado no mar dos olhos, olha o presente e o futuro. O que não espera é que, num movimento cínico de Chronos, a linha do tempo se (con)funda, unindo, num suspiro, as mãos e o mapa sem geografia, onde tudo é apenas recordação… leve e frágil reminiscência – Envío.


Em síntese, Adiadas Dunas oferece-nos a demanda por um sentido inteiro do mundo desfraldado nas crinas das palavras, onde significante e referente, porque agarrados a um lastro comum – as emoções – possam convergir no seu sentido mais perfeito.

Restos

Quedamos nós
como sen luz e transgredidos
cheos de ollos e de voces
que xorden como maxias imposibles,
como o sangue coagulado
que se amorea, e espertamos
sen saber que fluíra algunha vez.
--------------------------------------
Unha palabra cínxenos á vida
e con nós busca o silencio.

[Francisco Mariño]

25 anos: Mão Morta no Theatro Circo

Não tinha sequer vinte anos quando assisti pela primeira vez a um concerto de Mão Morta, ao vivo. Recordo poucas coisas com nitidez e do flash difuso ocorrem-me imagens anónimas de um pavilhão em total desconcerto e caos.
Essa sempre foi, de resto, a imagem que Adolfo Luxúria Canibal passou. O retrato do ser fracturante, a roçar o anarquismo que, muito por força de uma personalidade com contornos definidos e de uma inteligência acima de média, surgia espontaneamente, sem qualquer tipo de artificialismo cultivado.
Hoje, com Adolfo já nos 50 anos, vê-lo a actuar é uma experiência totalmente diferente. O charme e o carisma estão lá, ainda que mais domados (até pela já proeminente barriga); os incitamentos rebeldes são velados e mais encenados do que genuínos; nas cadeiras, o cabedal negro cedeu lugar à miscigenação que caracteriza as tendências actuais, onde cetins se misturam com algodões de cores diversas. A música? ainda rock cru e duro, mas aqui e acolá pontuado por pormenores pop e até electrónicos. De inalterado, apenas as letras, onde os complexos humanos e as suas forças vitais (sexo e morte) determinam a linha maior (presentemente, muito marcadas pelas reflexões de J. G. Ballard).
O último álbum, “Pesadelo em Peluche”, tem sido aclamado pela crítica. Foi isso, para lá dos seus 25 anos de carreira, que fizeram regressar os Mão Morta ao palco da sua/minha cidade: o emblemático Theatro Circo. A noite escondeu-se por detrás da voz sussurrada do Canibal, durante quase duas inesquecíveis (nostálgicas, também) horas.


Mão Morta, Novelos de Paixão

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

tessitura de inverno


duyn huyn,  dreaming under the moth moon


não haverá uma só coisa
que cante em voz alta
nem uma só
em que acredite o olhar.

tanto perdi
que os bolsos vazios
são agora bússola e estrada.

cabe-lhes o tempo
e o seu rolo de argila sonora;
sobra-lhes o poema
onde só a decepção
inaugura as ramagens
de um inverno de nuvens claras.


david bowie, i'm deranged

sábado, 4 de dezembro de 2010

miríade

maria valentina

são mais de mil
as lâminas que espreitam
na varanda dos olhos.

debruço-me
sobre o horizonte breve do livro

[o poema nunca escolhe a mão:
deus, homem, poeta ou demónio?]

a única queda que aceito?
a água no seu leito.

são mais de mil
as flâmulas que espelham
na voragem dos olhos.

debulho-me
sobre o horizonte bardo do livro

[o poema nunca encolhe a mão:
ateu, bicho, poeta ou anjo?]

a única veda que aceito?
a alma no seu peito.

(Cris de Souza & Jorge Pimenta)




lhasa de sela, rising