quinta-feira, 29 de abril de 2010

canícula

o amor desprende-se da janela
e o sorriso agarra-se aos lábios do medo.

entre a mágoa e o orgulho
os olhos perderam a água
e ardem, agora, no sal estéril
que ferve sob o dique da pele

nem uma lágrima para lavar a dor
nem um soluço para amansar o suor

continua a sonhar com a casa
que lhe beija o rosto seco
com o veneno dos dias.

a noite ruiu sobre a cal…
lá fora começou a chover.

terça-feira, 27 de abril de 2010


The Smiths, Girlfriend in a Coma


antes do amor
a maçã verde
em ramos de morder
como o desejo que se estica
para além da vida
(até à morte é tão pouco tempo…).


o amor
todo o mel que escorre,
espesso e lento,
das palavras que perderam a boca
no corpo frágil do poema;

todos os olhos que lambem,
em salto acrobático,
os frutos da época
sem medo do riso do tempo.


e depois do amor?
tão só palavras cuspidas da boca suja
como versos disparados com musgo
a apodrecer, cínicos,
ao lado de maçãs serôdias
(as mesmas que recusaram as tuas mãos).

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Panfleto

Foto de José Figueira

No dia em que o Homem

calar como quem beija
gritar como quem fraqueja
amar como quem boceja
odiar como quem verseja

abro mão do terço
derramo o vinho
rasgo o verso
(onde quis ser eterno menino).

Na palma da mão
uma só certeza me permito:
senhoras e senhores,
(mesmo que sem vossa licença)
eu me DEMITO!

sábado, 24 de abril de 2010

Entre o Livro e a Liberdade

O Colectivo Silêncio da Gaveta, em parceria com a Nuvem Voadora, reedita o sucesso de Abril de 2009, momento em que, procurando assinalar o Dia Mundial da Poesia, fez crescer nos troncos de dezenas de árvores de Vila do Conde cerca de 2000 poemas de poetas de todo o mundo.
Este ano, nos dias 23, 24 e 25 de Abril, no jardim da Avenida Júlio Graça em Vila do Conde, recriaram algo ainda mais original e com um efeito visual arrepiante. Dispersas ao longo de dezenas de metros de jardim, ergue-se um verdadeiro canavial onde o açúcar a extrair mais não é do que as palavras de poetas portugueses e estrangeiros. Lado a lado, convivem portugueses, espanhóis, gregos, checos, brasileiros, uruguaios, cubanos, só para citar alguns dos que guardo na memória. Ao longe, é possível cheirar pequenas folhas de papel girando ao vento, como girassóis à procura dos olhos que os guiem (ou os percam).
Ao lado de nomes consagrados (como João Pedro Mésseder ou Valter Hugo Mãe) agitam-se folhas de autores a darem os primeiros passos nestas lidas. Perdi-me entre as palavras do Henrique Barroso, da Laura Alberto, da Sara Costa – todos poetas amigos. Também lá plantei três poemas, um deles presente neste blogue (Viagem, postado no dia 18 de Fevereiro), e dois outros publicados no entretanto extinto Circum-viagem – Rua Crepuscular e No Quarto.
Deixo aqui um pequena preciosidade em que, qual beija-flor, pousei, enquanto voava sobre os poemas:

alvejaste-me
com uma bela perdida
no peito

(Pedro Pirata)





sexta-feira, 23 de abril de 2010

corrente de ar

Passeio dos Navegantes
Fotografia de José Figueira

frio...
já nem os versos me aquecem
(como poderiam trazer a primavera
se os braços não ousam rebentar
em folhas jovens?)

frio...
os dias passam
com o sabor de lábios gretados
que não sabem assobiar

frio...
os dedos enrijecem na pele

e o poema a arder em lume brando.

terça-feira, 20 de abril de 2010

premonição vã

rasguei os olhos para conseguir chorar
cortei os pulsos para poder respirar

a casa inaugurou o medo
(premonição?)

o espelho queimou o rosto
(em vão…)


Trovante, Memórias de um Beijo

domingo, 18 de abril de 2010

banquete


o verso
alimenta-se com a sua fome;
o poema
sacia-se com a própria sede.

eis porque
escrevo o teu corpo com cerejas
(mordo-as até ao fim);
e contorno o teu nome com água
(bebo-a para permaneceres em mim).

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Crash - Colisão


Estreou em 2004, mas, como a generalidade dos grandes filmes que não dispõem, na retaguarda, de uma máquina comercial poderosa, terá passado despercebido do grande público; falo de Crash.
Num mundo pluricultural, pluriétnico e de grande diversidade moral (de que o melting pot norte-americano é o expoente maior), o racismo, a intolerância e o egocentrismo são apenas pretextos para se tocar no que de mais profundo move o ser humano: as relações interpessoais.
Partindo de um frame narrativo muito em voga na cinefilia actual, Paul Haggins apresenta-nos não apenas uma galeria de actores (excelentes, diga-se), mas, sobretudo, de pessoas, feitas de carne e osso, corpo e alma que, como qualquer um de nós, independentemente do seu estatuto e das suas valências, tem "crashes" na vida. Temos, assim, diferentes estórias paralelas que, ora nos pequenos detalhes, ora nos grandes cometimentos, cruzam destinos, num exercício psicológico e social que (até porque bem suportado numa banda sonora arrepiante, da autoria de Mark Isham), chega a atingir níveis de dramatismo verdadeiramente perturbadores.
A ideia maniqueísta que durante anos a indústria cinematográfica vinha vendendo, sugerindo que no mundo apenas havia dois tipos de pessoas - os bons e o maus - cai redondamente por terra neste filme. Estamos perante um registo humanizado do indivíduo (na sua relação consigo mesmo e com os outros) que, quando confrontado com diferentes desafios, pode reagir como lobo ou cordeiro. Esta ideia é tranversal, já que cruza todas as personagens, diria que fatal e irreversivelmente. Assim, da redenção à queda ou da queda à superação vai um instante tão breve quanto todos os que separam os grandes valores da espécie humana.
No final, a certeza de que o acidente (Crash), que simbolicamente abre e fecha o filme, acaba por todos tocar, mais cedo ou mais tarde, inevitavelmente.



In the Deep, Bird York (from Crash)

terça-feira, 13 de abril de 2010

raiz

de ti quis a eternidade até à raiz do tempo
como o operário suado procura o silêncio.

não viajaste do meu lado da estrada.

hoje, o vento corre a desfazer o mundo:
leva o teu grito por esses ares fora.


Mark Isham, Negligence (track from the movie Crash)

domingo, 11 de abril de 2010

Baloiço


Neil Hannon and Ute Lemper , Tango Ballad

o fruto permanece suspenso no viés do olhar
ainda ontem ameaçou cair mas já nada havia a recordar

toquei com o teu nome a sua pele de fogo cru
por mais que o sol arda a chama provém do seu corpo nu

à sua volta os demais frutos entregam-se a Morfeu
o meu resiste no baloiço de alguém que o prometeu

desfaço entre os dedos o seu leite espesso
deixo escorrer pelo rosto o mel que não mereço

não sei se o tempo acima da árvore mudou
mas nos cantos da boca o seu néctar secou

o desejo entorpeceu a sua imagem cinzelada
arrependo-me de o ter arrancado naquela madrugada

quinta-feira, 8 de abril de 2010

morada

a casa está abandonada. deixaram lá tudo: o soalho, as telhas, a cal, as portas, os móveis, os copos, a roupa... até o aroma dos corpos e as cerejas maduras resistem à poeira do tempo.
deixaram lá tudo... preciso mudar - ouviamos; faz falta recomeçar - acreditávamos; já pensaste que tens de renascer? - perguntavam-nos. as vozes que escutamos mas não reconhecemos têm sempre a força de um verão adiado e acabam sendo as mais respeitadas pelos ouvidos cansados de palavras disparadas por revóveres escondidos nas nuvens, como se a exactidão anatómica do dedo que prime o gatilho morasse no interior escuro da tua boca - por isso acabámos por aquiescer; as vozes que não têm dono escrevem-se com sangue nas curvas do ar - por isso acabámos por esquecer)
a casa permanece abandonada. deixaram lá tudo.
agora, o tempo é mais lento e o olhar turva-se no abismo da memória (sabias que a solidão tem a mesma natureza dos cravos que florescem na pele? apenas sabemos que existem porque nos olham descaradamente como se o único inquilino autorizado do corpo fosse eles... mesmo que os não queira, mesmo que os despreze, mesmo que os castigue com silêncios azuis que se erguem acima dos telhados, confundindo-se com o céu da saudade... como fazê-los entender?)
a casa continua abandonada, deixaram lá tudo.
já escureceu? (houve noites em que sonhei com submarinos escatológicos a aguardar que a maré me levasse para longe... em vão)
já amanheceu? (houve manhãs em que sonhei com a tua boca a queimar o asfalto por onde seguir... inutilmente)
anoiteceu ou amanheceu? sei lá!... mas, se foi algures entre a noite e a alvorada que perdi o itinerário do teu nome, que faço eu aqui?...

quarta-feira, 7 de abril de 2010

nome

breve
(como tu)
cruza olhares
e estende-se
na passerelle da vida,
sem medo de perder
sem a ilusão de vencer.
frágil
apenas frágil
(nada sabe da timidez
e jamais ouviu falar de soberba).

letra sobre letra
toca
os círculos de peixes na água
as linhas exactas da mão
e as curvas imprevisíveis do corpo.

houve tardes em que me pareceu ver
o sol a incendiar
a boca que ainda o sabe dizer;
era apenas o brilho por detrás da cortina
do tempo que eu não soube viver.

terça-feira, 6 de abril de 2010


Eddie Vedder, Society


I went to the woods because I wanted to live deliberately, I wanted to live deep and suck out all the marrow of life, To put to rout all that was not life and not when I had come to die Discover that I had not lived.

Henry David Thoreau

(Mesmo que as florestas não existam senão dentro de cada um de nós...)

segunda-feira, 5 de abril de 2010

vaga-luz

Cepães

esperei o silêncio do mar e uma rocha lisa suspirando pelos marujos que levam o tempo e deixam, pousados sobre os gemidos da areia, a mágoa de quem não sabe esquecer

esperei a respiração breve sobre a claridade das mãos ou a nave que as navegue sem medo dos órgãos vazios ou dos corpos por preencher

esperei a vaga disforme saltando a curva quotidiana e incendiando a areia quase branca onde depositei a sede

de tanto esperar
a poeira pousou sobre a pele
e as asas quebraram-se, sozinhas, contra o azul sem cio

nada mais resta ao olhar senão beber o derradeiro brilho em vaga-luz

sábado, 3 de abril de 2010

in-evitabilidade

lembro-me de tão pouco... (será que tudo ainda se recorda de mim?...)
às vezes gostava de já nada saber, de apagar a luz do quarto e rasurar a última palavra escrita com contorno e sombra. só que o tempo repousa sobre o corpo, mas não pára, e nos intervalos das horas percebo que ainda permanecem trivialidades como o instinto do ar, a rota do navio ou o avião de papel estrebuchando contra o taco, no canto do ser.
como desfazer a língua que escorre sobre o vidro do aquário sem peixes? (até eles preferem o asfalto) como esquecer as cores, as formas, a frente e as costas, os rostos e os dedos, a prosa e o verso? (será que o mundo já se esqueceu de mim?)
ainda imóvel, entre a memória e o esquecimento, bato a porta, chicoteio as palavras, transgrido a intimidade e renuncio ao desejo. era inevitável ficar atolado num canteiro sem rosas.


Lisa Germano, Into Oblivion

quinta-feira, 1 de abril de 2010

primavera



chegou, tímida, por detrás do nome. sobre os ombros, um lenço fino de algodão espreitava, ainda, o frio nos ossos e na pele. não sei se o balanço leve dos membros segurava os nervos sobre o frio, se deixava escorrer o frio que contamina os nervos... não sei... sei que tremia... tremia com o escarlate vivo dos lábios e a amêndoa, ainda amarga, dos olhos.
o corpo hirto sobre a terra fumegante e os mamilos frouxos da alvorada desdenham da sinfonia das cores e dos sentidos. onde está a cesta de vime coberta de pétalas e lábios adoptados pelas beiras de estrada? e os corpos nus gargalhando nas águas tépidas da alma? e a pele, essa semente do sol, por que renuncia às gotas de suor que sabem queimar o pó do corpo?
chegou, tímida, por detrás do nome. trazia noites compridas nas mãos e, nos dedos, o medo de ficar.
deixei de entender o frenesim do tempo e o frio das horas... desinteresso-me pelo carrossel das estações e o movimento dos astros... já só quero sentir o ciclo do sangue dentro de mim.
e lá fora? lá fora?... quero lá saber...