sexta-feira, 28 de outubro de 2011

epopeia de pores-do-sol

salvador dali, la esfinge de azúcar


sei-te num retrato
que inaugura pores-do-sol,
pequeno, gasto
como os olhos de um gato adormecido

na moldura chovem refúgios e castigos:
calafrios sustêm o andar
num esquecimento musical,
pedaços de vidro engolem a voz
numa sinfonia despovoada.

sei-te num retrato
que imatura pores-do-sol,
perdido, bardo
como os olhos de um gato amanhecido

na mensura trovem respingos e perigos:
arrepios sorvem o andar
num espaçamento musical,
pedaços de vela encobrem a voz
numa sintonia desnorteada.

e enquanto sorris,
com olhos negros e dentes brancos
e todos os encantos de lume e terra,
roubas-me os passos tortos
com que despia as flores.

algures entre a saudade e o lábio
aprendemos a morrer
na distância um do outro.

e enquanto sentis,
com olhos negros e dentes bastos
e todos os recantos de lira e esfera,
roubas-me os passos tolos
com que desvio as flores.

algures entre a saudade e o astrolábio
aprendemos a morar
na distância um do outro.

(Cris de Souza & Jorge Pimenta)

smog, rock bottom reiser

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

alvoradas com violinos para trópicos de afonia e voz


Às vezes esqueço-me de que sou um ser intermédio, alguém que pode já estar à frente do homem das cavernas mas ainda estou longe daquilo cuja promessa pressinto dentro de mim.
Alçada Baptista, O Tecido do Outono

bate-me à porta, mas devagar - jorge pimenta

cantaste tão baixo
que os frutos apodreceram
e envenenaram-nos as gargantas
com espinhos vermelhos
de uma flor quase rosa.

e eu que queria cantar mais alto que os deuses
saber-te gruta clara
e madrugada em violino.
disse-te um dia que desejei
beber-te o silêncio
deitar-te nos mapas do corpo
e acender todas as luzes que nos cabiam na algibeira.
disse amo-te,
mesmo que numa boca crepuscular.

de todas as cartas em que me foste
guardo uma, apenas,
sem remetente ou selo.
cheira à tua saliva
preserva a textura do teu sangue
e o calor das palavras frias que menstruam a boca:
nenhum corpo se alimenta apenas de versos
e até a eternidade já sabe o que é morrer.

aprendi a escrever para te aprender a perder.



arctic monkeys, love is a laserquest


quinta-feira, 13 de outubro de 2011

voo suicida para todos os instantes perfeitos e dois suspiros

fotografia de jorge pimenta 
I

Estou cansado de ser apenas homem.
Antonio Skármeta, O Carteiro de Pablo Neruda

abro-te estas mãos que não acabam no tempo.
serás tu quem me há de sepultar
assim que mirrem os crisântemos
e o homem esqueça toda a linguagem.
não sei quando, na verdade,
não sou deus
e a catequese está já à distância da memória
por isso espero pelo calendário que marca os dias até morrer
e uma cigana que adivinhe quantos soubemos viver
nos silêncios que esquecem todas as palavras
todas as bocas
e quase todos os beijos.
será que permanecerão em mim,
pelo lado de fora,
os ruídos lentos que me abandonaram,
essa máquina que separa os vivos dos vivos
e nos aproxima dos mortos?

jorge pimenta



fotografia de jorge pimenta

II

[…] e ninguém podia imaginar o mundo de palavras que levava comigo.
Morrer é estar absolutamente sozinho.
[…] na solidão, é-me impossível fugir de mim próprio.
José Luís Peixoto, Cemitério de Pianos

parece que muros se erguem violando o céu sagrado
deixo que o grito se suma mudo
e a terra cubra quem tomba pelas valetas
se é no horizonte que se desenha o futuro,
ainda que a lápis, ainda que alguém o apague
eterno é tudo aquilo que nunca fui

no vasto rol de deuses que me fitam do alto,
com o dedo acusador
sei que há silêncio e gemidos ocultos na carne cansada
e olhos fechados sobre todos eles

eu sei que vou morrer
eu sei que vou, um dia, morrer
eu sei que as asas que me deram não me deixam voar
e eu sei que sei voar
e eu sei que vou voar, no dia que eu sei que vou morrer.

laura alberto


sigur rós, viorar vel til loftárása

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

alucinações inocentes sobre estações áridas e homens de temperatura extenuada


alexandre parrot

a nossa única defesa contra a morte é o amor
josé saramago


houve um verão em que o calor nos preencheu os silêncios
indiferente ao suor que humedece o fumo de um cigarro
e às ondas que nos rebentavam o peito.
perdemos as horas e o que os homens fazem com elas
e quase nada ganhámos.
um coração bate sempre mais agitado do que o poema – dizias,
espreguiçando os braços na fresca seda da pele
talvez à espera que eu escrevesse de menos
ou amasse de mais.
houve um verão em que fomos amantes em tons de violeta
acorrentámos lugares inquietos
amarrámos o medo ao silêncio
e gritámos impropérios à cegueira dos deuses
enquanto corríamos sem saber da linha de chegada,
sempre com pés de tinta
talvez versos nos dedos.
mas de que serve ter um animal vivo
se está dobrado pelo estremecimento dos dias?

agora é outono.
resta-nos sentir a breve saliva dos fins de tarde
e aprender com os que passam sem o saberem.
afinal, o homem é aquilo que o separa do homem.

kings of convenience, boat behind