sexta-feira, 25 de novembro de 2011

ode às mãos, ao amor e ao tecido do tempo

De mãos é cada flor, cada cidade.
Ningúem pode vencer estas espadas.
Manuel Alegre, As Mãos

as mãos: a palma e as costas [fotografia de jorge pimenta]


é a mão quem me guia.
hoje,
sobre o poema inconcreto.

houve um tempo em que fui as mãos
sobre a largura das coisas
em toda a extensão do corpo,
em cada olhar teu.
percorri-te inteira,
quando a luz crescia sobre o teu nome
e a escuridão abria brechas no meu.
amansámos as águas e os remoinhos
soubemos o nome dos oceanos
distinguimos as correntes,
tu, mão
eu, ainda mão
a tocar, a acender, e explodir
na translação marinha
daquela nau que jurou as índias ao casco
daquela vela que prometeu os lábios ao vento.

é a mão quem me guia.
hoje,
sobre nuvens
a adormecer antes da chuva.
pergunto-me se ainda sei o teu nome
ou se os peixes reconhecem o aquário da tua voz.
responde-me a memória que te imita como se escrevesses.
apago o rasto de tinta com a cor do teu batom;
é que se a pele secou
ainda é a mão quem me guia.
hoje.
talvez nunca mais.

the cinematic orchestra, to build a home

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

auroras, canções e açucenas para vozes [des]alinhadas


aprendíamos a amar, aprendíamos
a morrer.
Eugénio de Andrade



fotografia de jorge pimenta


é nas estações frias que o corpo dói – disseste-me.
a fortuna é um vento seco a crescer da terra
para nos segurar as mãos
inútil, excessivo, tardio,
como os pulsos cortados daquele sol de fim de calendário.
nunca soube o que aprendemos sobre o amor
o cântico aceso dos versos
ou todas as flores que nos desciam pela boca;
e estivemos sempre tão longe de adivinhar a morte.

o amor é um jornal velho sobre a voz – disseste-me.
um desperdício, um número, um acontecimento sem rosto
para os abismos do coração,
dos barcos a navegar em tinas de roupa suja.
quisera o homem não saber ler
não poder ver
[os olhos perderam os telhados do céu],
quisera ele,
esquecido, sobre a relva.

o café assobia na chama,
enquanto as mãos, cada vez mais pequenas,
se dobram de frio no oxigénio da respiração primeira.
o corpo? inerte, imóvel, fechado.
há chaves que se perdem para sempre.

catpower, wild is the wind

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

livros lacunares para hesitações, dois naufrágios e toda a cegueira

No fim tu hás de ver que as coisas mais leves são as únicas
que o vento não conseguiu levar...
Mário Quintana

denis olivier


fechei o livro e todos os rostos que nele habitam.

já sei tudo, tudo:
li barcos, mares, marinheiros
e toda a ancoragem pelas florestas do peito,
aprendi rostos em penumbra
com sorrisos de meio lábio e todo o fogo,
encontrei cânticos embriagados nos telhados
e vozes que crescem no labirinto das mãos.

sim, sei tudo e quase nada me assusta:
da morte e da loucura do sangue
da mitologia da ausência
ou das noites inteiras, intactas, soberanas
[como aquele olhar que é só teu].

sim, sei tudo sobre todas as coisas,
aquelas que adormecem, um dia, pelo tempo fora.

podia saber talvez mais sobre o amor,
essa bebida que entornamos devagar,
gota após gota,
sobre pálpebras de respiração e suor,
quentes, monossilábicas, quase impercetíveis
como vendavais no corpo e na vontade do corpo,
quase sempre chuva,
quase sempre debaixo da chuva.

do que sei e nunca saberei,
a certeza de que
o homem ama antes de todos os livros.
[terá este livro sido escrito, já?]
Marisa, Chuva

sábado, 5 de novembro de 2011

De todos o lugares [in]acessíveis – voz canto palavra silêncio

algures nas ruas e vielas do porto

Ao Roberto Lima, amigo jornalista e escritor [cronicasderobertolima.blogspot.com], recém-chegado ao Porto, e que me tem dado o privilégio de com ele privar até domingo.
Aos meus amigos dos blogues, com votos de que o tempo se faça nosso, um dia, não apenas através dos dedos, não apenas na tinta, mas inteiro, absoluto, na madrugada fresca do nosso abraço.

Dead Combo, Esse olhar que era só teu

[Reencontro]
E quando o caminho perder os pés?
Acaso os frutos silvestres chegam
para lhe temperar a latitude, a longitude
e o desejo de ser percorrido
como todos os horizontes maiores que não sabem morrer?


ribeira do porto - 1

ribeira do porto - 2

ribeira do porto - 3


04 de novembro de 2011
Fiz-me à estrada. Não, não foi ontem, mas num dia de setembro, banal por certo, talvez até chuvoso como hoje, mas que adivinhou mais uma vida por detrás dos seus olhos abertos. Sim, foi nesse dia que me fiz à estrada porque fiz toda a estrada. E o alcatrão abriu-se diante dos meus braços, suspirante, tão leve que parecia flutuar, rir, agitar-se por entre as ramagens da timidez e do berço.
Foi num desses atalhos de trilho incerto, bem perto de todos os instantes, que os dedos me levaram para longe, bem longe – um homem perde-se sempre caminhando numa avenida em linha reta. Chovia. Pensei tratar-se de Belo Horizonte, primeiro. Consultei a carta que inventou a geografia e todos os geógrafos que têm nome e o souberam viver e cheguei a Jersey. Ao lado da América, Portugal; daí, num pequeno salto, o mundo, como ele só, imenso, sem metades, antes mão e corpo num abraço só. E o Roberto Lima, na sua máquina de escrever, chegou a todos os lugares e a todos os eus que os habitam. Já lá vão dois anos, mas o que é o tempo senão essa malformação genética que os deuses inventaram para nos humilhar e suster no desejo de voar?
O tempo é o Homem, dizia Borges, de olhos fechados para o mundo mas com a lucidez estendida para o Homem. E a chuva varria a harmonia do esquecimento. No dia em que me consegui ler nas palavras de Borges, despi-me de relógios, parti ponteiros, matei o sol ao mesmo tempo que gritava impropérios a Cronos e às demais divindades que escarnecem da sua criação mais imperfeitamente irresistível – o Homem. Percebi então haver uma luz que segue Borges e que nem eu, com os dois olhos bem abertos, consigo tocar, nas minhas dúvidas, aspirações e demais acordes de um fado sem guitarra, tão somente com alguma voz e frio, como as noites de novembro, chuvosas, numa qualquer cidade portuguesa.
O Porto, por exemplo. Ontem, na tasca da D. Helena, ali no coração da Ribeira, ao som da Polka [o fado, envergonhado e com os pés encharcados, temente da noite e da gripe, recolheu à cama cedo], revisitando a vida tão contrária em tantas palavras, a maioria de um conceito só, enquanto o rio encolhia os ombros, indiferente à indiferença daqueles que o abandonam por recearem que Noé tivesse perdido a arca no dilúvio neobíblico deste novembro português.
O Porto, de novo. Ontem, no Zé de Braga, confundindo a geografia, por esconder na Augusta cidade do Minho que lhe doura o nome tantos rostos e esperanças, desde Viseu a São Paulo, passando por todos os lugares que nos crescem na viagem.
O Porto, ainda. Ontem, com vinho do Porto, de aroma inalterado pela terra, cor rubi, lágrima Christi, o paladar de Adamastores e velas de linho e vento como aquele papel que entregamos secretamente, sem remetente ou destinatário, mas que sorri da tinta vazia, porque inscreve as coordenadas na mão que o riscou.
E o tempo foi nosso, porque o fizemos nosso. E o tempo foi o Porto, foi a Ribeira, foi o lugar e todos os lugares e todos os rostos e todos os nomes e nós. E nós.
Recomeçara a chover.

Já é tarde; daqui a pouco há mais: os Trovante e os seus cabelos brancos, já com 35 anos de carreira. Eles, como o Roberto e todos os meus amigos, tornaram-se aquela marca de pele que resiste ao tempo. Não que o tenham aprendido a matar; antes deram-lhe vida e souberam levá-lo consigo.


05 de novembro de 2011
trovante e o porto: as células de tantos [re]encontros

na biblioteca da música, a gui, o roberto, o zé manel, eu e a manela [a rosa treinava fotografia] 

E os Trovante vieram. E com eles a flor azul que guarda as montanhas onde barricamos todos as alvoradas e quase nenhum crepúsculo. E sorriam, eles; e sorríamos, nós; o sorriso deles dentro do nosso, o nosso equilibrando-nos noutros, uns de pedra, outros de boca mordida, quando não de chão queimado, de estrelas de pó, de pó de estrelas, de estandartes, de rios fulgurantes, de centauros e foz, de todos os cavalos que galopam sem origem, sem destino, mas com memória.
É que nem todas as coisas do mundo se fizeram para murchar.


Trovante, Xácara das bruxas dançando