segunda-feira, 25 de julho de 2011

crime perfeito para canção de aconchegos e infinitos



parque natural de são jacinto

provocámos a noite.
inventámos a canção
e sabíamo-la perfeita, quase sibilina,
como todos os sons de um violino de alfazema.

recordo as verdades embrionárias
deambulando pelo interior dos corpos
em passos de açucena
e movimentos de primavera.
e ríamos na integridade do tempo
na madrugada das lágrimas
na agressão de todos os amores perfeitos

noites mais tarde revisitei a pauta
já sem instrumento, sem voz, sem melodia.
acreditei no verso que compusemos
como num estuário de movimento perpétuo
empurrando o sal e o mel das águas
para o abismo das pétalas que reparam a pele
para o solo das flores que rebentam sem luz.

a solidão enterrou-nos o sono
e a memória insone é agora o altar onde sacralizámos os deuses.
há silêncios musicais a dourar o excesso vocal
há medo a borbulhar no paraíso das bocas
há golpes de diamante a apagar as letras.
dessa melodia sobra apenas o véu luminoso
de cometas deslizantes sobre cordas
que na noite perderam a cauda
[oh, como descem o ar
à procura da imobilidade absoluta dos corpos].

a música é como a morte:
ambas são a verdade mas nenhuma se explica.

smog, to be of use

segunda-feira, 18 de julho de 2011

verso branco para árvore em tons de corpo amnésico

jean sebastien monzani, memórias

deixei o poema na tua mão.

para que mo pediste
se te demoras em pontes inquietas
aguardando a passagem dos rios?
eu sei, não queres correr
e todas as decisões
são apenas poeiras inúteis na superfície do ar.
que tudo passe, que tudo leve e transforme
diante das orbes frágeis dos olhos,
desejas,
mas nem isso consegues dizer mais alto do que o medo
porque todas as palavras vivem dos segredos
e do que não deixas entender.
há em ti um modo secreto de tudo dizer
e um instrumento barroco a dourar-te o silêncio
como se respirassem nele as verdades da escrita.

deixei o poema na tua mão.

enlouqueço na apatia das letras
e estremeço na letargia dos sons
porque esqueci de que cor é o lírio da tua voz.
 já não sei escrever
e os meus lábios adoeceram no frio da canção
enquanto o mel da criação
funde os sexos numa massa mole
que se desprendeu da árvore
e apodreceu na mão do criador.
até os deuses parecem figuras menores
com existência digital
entretidos a pôr laços pretos nos pescoços dos homens.

mas, olha, não desisti de saber
onde escondes o pêssego maduro
que atravessa os ossos esquecidos
enquanto o corpo treme
acendendo a poeira e todas as promessas sem roupa.
porque a vida é a minha sentença,
rejeito as pálpebras do mundo
e as cortinas onde se escondem os desejos transparentes.

the national, vanderlyle crybaby geeks

sábado, 9 de julho de 2011

retórica incandescente para tecido de sustentação corporal

aljezur

sim,
atira-me ao fundo do mar
como quem beija,
todo o tecido pede violência
para medir a resistência.

quero os teus pulsos
de guelras temperadas em sangue negro,
um dia, cordão de açúcar,
no outro, lábio de voo plano.
desejo as tuas mãos
de óleo com escamas na pele
a escorrer precipícios trágicos
sobre a trajectória dos peixes.

sim,
ata-me às rochas do mar
como quem ama
prende-me com algas
mesmo que a eternidade se escreva com cinzas
dispersas pelo vento
algures entre os trilhos de sangue aceso por dentro
e os pés que tropeçaram nas botas e no caminho.

se todo o amor fica incompleto
na estreiteza do corpo
e os lábios adormecem
na contracapa da noite
para quê recordar as cartas recebidas?
as palavras são apenas ossos brancos
a apodrecer no negativo fotográfico
com que um dia ousamos
fotografar a melancolia dos rostos.



einsturzende neubauten, blume

terça-feira, 5 de julho de 2011

Projecto Crescer no Palco

É, seguramente, uma das mais lidas, encenadas e vistas peças de teatro escritas em português: o Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente.
Poderá pensar-se Oh, não, esta peça outra vez?, tantas são as vezes que é estudada e, talvez por isso mesmo, vista por alunos e professores, em diferentes propostas, ao longo dos anos. Todavia, não conjuguemos planos que, na génese, pertencem a quadros distintos: por um lado, existe a peça, património do dramático, objecto de estudo na sala de aula, como tantas outras; por outro lado, existe a representação proposta por companhias de teatro mais ou menos credenciadas, de norte a sul do país, em sequências de espectáculos a que todos os nossos jovens de 9º ano assistem; num terceiro plano, existe a apropriação do texto e a sua interiorização em cima do palco, por recurso a um conjunto de linguagens (dramática, cenográfica e musical) que complementam a linguagem académica (tantas vezes teórica e teorizante), consubstanciando-se esta nova acção numa aprendizagem segura, sustentada e significativa, ou não fosse polida pelo crivo da experiência.


Assim nasceu o projecto Crescer no Palco, em 2009/2010, então com a representação de uma adaptação da obra O Macaco do Rabo Cortado, de António Torrado, a que se deu continuidade, em 2010/2011, com a mais conhecida das obras de Mestre Gil.
Os trabalhos arrancaram bem cedo, no início do ano lectivo, por altura em que se procedeu à atribuição de papéis pelos 23 alunos da turma, logo após um breve casting baseado, quase que exclusivamente, na leitura de trechos de cada cena. Seguiu-se o trabalho de memorização do texto em simultâneo com os primeiros movimentos de palco para desinibir a ajudar a interiorizar a personagem, os seus tiques e comportamentos.
Já no segundo período, foram tomadas decisões relativamente aos adereços (integralmente recolhidos e, quando necessários, construídos de raiz pelos alunos e seus encarregados de educação) e ao som a incorporar na representação (que contou com uma selecção que ia desde música palaciana ao Heavy Metal, havendo ainda incursões pela música clássica e cinematográfica de permeio). Foi ainda nesta fase que o Professor de Educação Visual, Francisco Assis, projectou, concebeu e concretizou, juntamente com um grupo de alunos da turma, toda a cenografia da peça. A definição de aspectos pendentes acabou por ser solucionada pelo Professor Zé Manel que, com a sua experiência e voluntarismo, resolveu franjas sensíveis que acabariam por tornar-se determinantes no desenvolvimento dos trabalhos (ex.: sistema de som, adereços que os alunos não conseguiram recolher, cortina no palco, etc).

Eis-nos, assim, chegados ao dia por todos esperado. Foi no 29 de Junho que os EE, familiares, Professores, AAE e amigos dos “actores” se deslocaram à escola para assistir ao trabalho de um ano que se materializou em cerca de uma hora. Uma sala quase repleta, aplausos com o brilho nas mãos, algumas lágrimas esquivas e um Gil Vicente que teima em permanecer junto de nós (apesar dos 500 anos de vida) são o garante maior de que a iniciativa cumpriu integralmente tudo quanto os seus promotores idealizaram.
Um ano desaparecia como areia breve por entre os dedos dos jovens actores. 60 minutos parece pouco tempo para tamanha empresa preparatória, mas há tempo dos homens com cuja tinta se escreve a própria eternidade… ainda que no papiro da memória.





marilyn manson, the beautiful people
[música utilizada na cena do sapateiro]