sexta-feira, 29 de abril de 2011

viagens de perímetro curto nas linhas da mão

astrid riecken

disseste-me que a eternidade
é de papel
com caracteres pequenos,
como as tuas mãos,
impressa a tinta
e leves rasuras,
tecido frágil após a queda
e bicicleta que se desprendeu da curva

viajo
nas ruas redondas de ti
onde me refaço
e amanheço,
ou me perco e enlouqueço
e me despedaço,
no adormecer de cada tarde
vazia de ti

disseste-me que a felicidade
se escreve com os teus dedos
e se lê pelos meus olhos
enquanto centenas de pessoas
que perderam o rosto
e esqueceram toda a linguagem
tropeçam no asfalto dos dias
à espera do esquecimento dos versos

nos teus olhos ousei escrever
o poema
que as minhas mãos escondiam,
para que os versos não se percam
nas curvas sem rosto,
nem resvalem sem rumo
nas rectas infinitas
por fora de ti

tudo me disseste…

 em quase tudo acreditei…

[acaso saberemos nós a medida certa do corpo
algures entre a explosão do sangue
e a erosão do coração?]

por outros encantos & jorge pimenta

vangelis, el greco - movement IV

sexta-feira, 22 de abril de 2011

etiquetas XIII

I. ciclo
da primavera,
dois pés rebentam em vaga
lado a lado.

do verão,
a pele em brasa lava o desejo
em incêndios de mar.

do outono,
soltam-se os dentes
na boca da falésia.

do inverno…
guardam-se destroços de pedra
nas águas irreparáveis.

de que nos servem, afinal,
os ossos?

arrifana


II. bílis
esta noite
todas as entradas do dicionário
são variações sinónimas
da palavra
chumbo.

vila nova de milfontes


III. verbo “querer”
eis
o deus da gramática
e o diabo dos homens.

sagres


IV. amnésia
soube um dia o teu nome
[inventei a linguagem
para te saber dizer]

esqueci um dia o teu nome
[há sempre um inverno
na meteorologia de cada homem]

ponta da piedade

nine inch nails, leaving hope

quinta-feira, 14 de abril de 2011

às mãos de papel que recortam nomes em anagrama

jorge molder


houve um dia em que fomos mãos
a inaugurar a geografia das mãos.
deitávamo-nos com voz de cerejas
e acordávamos numa canção de embalar,
frágil, feminina, quase imperceptível .
e eu fui criança
e tu demasiado alta para as minhas mãos,
mãos pequenas, mãos incompletas, mãos de criança.
e o choro molhou-me os pés,
percorreu-te os planos
e fez do futuro um rio atolado de medo plural.

houve um dia em que deixámos de ser mãos.
cultivámos silêncios na estrada
e riscámos o mapa das mãos.
sei que tudo existe para ser dito
tudo existe antes de ser dito
mas nada permanece depois da palavra
e dos incêndios de voz;
são autos-de-fé pagãos
que só os poetas ateiam
com os fósforos dos dedos,
são narrativas queimadas
no livro encarnado dos afectos.
procurámos os lírios na própria voz
atirámos acusações contra a parede
e a verdade passou a escrever-se sem as nossas bocas.

houve um dia em que nos encontrámos,
com mãos escondidas nas luvas
e a areia a preencher os bolsos.
era tarde
e já nem sabia de que lado nascia o sol,
olhei para cima das recordações
e não encontrei os grandes versos.

no fundo negro dos teus olhos
aprendi que as mãos anoitecem nas mãos.

tindersticks, until de morning comes




– deixa-me beijar
as ondas que trazes nos braços.

– há beijos que matam.
ousas?

sexta-feira, 8 de abril de 2011

ode às vozes anónimas com arco-íris em versos de neve e carvão

                                                                                                fotografia retirada da internet

quem és tu que vives no poema?
os nomes nada significam
e trepam as escarpas do conhecimento.
lá em baixo,
junto das flores das dunas,
habitas versos
e respiras palavras,
como se o ninho da linguagem
soubesse de toda a verdade que mente ao poeta.

quem és tu que vives no poema?
vestes de maneira simples:
inspiração mágoa e delírio.
lá em baixo,
entre a voz e a escrita,
sentas-te no inferno da tarde
e acenas às ondas do corpo
como se todos os abismos
começassem nos lábios que a sombra acendeu.

aprendi a tua história:
abandonaste o nome
e escreveste-te inominável,
correste a estrada
saltaste o muro o pinhal e a corda
ergueste o vendaval em searas de alfabetos
e ciprestes de recordações.

quem és tu que vives no poema?
vénus circe penélope
ou simplesmente quase-mulher?

hoje
toda a poesia me apodrece nas mãos.

philip glass, the hours

sexta-feira, 1 de abril de 2011

petróleo: a candeia que se escreve com as letras do teu nome

                                emil schildt, the end of the world

faço tudo para que o poema arda
mas já só tenho a certeza de nada.
às vezes penso que a poesia não existe
e que o poeta é apenas mais um homem
que deambula pelas ruas da respiração,
entre lixos e detritos,
e grita, rouco, ao medo esquecido
na tempestade da sua cidade.

aprendi que a poesia atravessa os silêncios
e campos de açucenas,
distribui primaveras
no inverno dos homens,
e costura flores e perfumes
em rostos sujos de tempo e rejeição.
mas a voz perde-se na doença anónima
que há-de costurar o seu corpo seco.

sabes,
eu fui poeta
antes do corpo virar do avesso
e fui amante
depois que as mãos se tornaram pequenas
fui também homem
antes da escalada ao sol
sobretudo fui louco
nas letras que navegam o teu corpo.

hoje,
a poesia já não é mais que o sangue adormecido nas veias:
todo o canto tem verso branco
e métrica imperfeita
nas mil e uma noites de distância
do teu nome.

placebo, protect me from what i want