sexta-feira, 27 de abril de 2012

as ruas do corpo


Expulsara o seu corpo para longe de si,
não queria assumir nenhuma responsabilidade sobre ele.
Milan Kundera, A insustentável leveza do ser

fotografia de jorge pimenta


todas as ruas sobrevivem à morte.
caem, nómadas, no interior do corpo
como se foram poeta
– desses poetas de cabelo desgrenhado
a desprender versos de loucura sobre ninhos
cantando todos os que amam
os que perdem o alfabeto
e a tinta molhada das veias.

todas as ruas permanecem intactas.
cantam, silentes, na pauta de pedra,
enquanto o amor, com guelras,
esquece as asas e o voo
por isso cai, cai com a noite
perdida a pele o sabor do sexo e os oceanos de dor
que agasalham a travessia dos lábios
e o escorbuto do beijo.

todas as ruas inauguram palavras.
arremessam, cegas, versos para os nomes
por já não saberem viver sós
por não lembrarem a cor da terra queimada
– só a canção do poeta louco
é reminiscência da vida quase toda:
mas de olhos fechados
quanto é verdade?

apenas as ruas sobrevivem à morte,
nada pedem em troca.
e o poeta? canta ou finge viver?

our broken garden, seven wild horses

sexta-feira, 20 de abril de 2012

viagem adverbial para lábios versos e demais estranhezas


Nenhum de nós pode escolher o modo como ama.
Baptista-Bastos, No interior da tua ausência


fotografia de jorge pimenta


como sublinhar os lábios
e a rota dos peixes
na água do beijo
se todo o aquário é labirinto
de bolor e ervas
por debaixo da luz?

já não sei reescrever a pele
ou tocar a pauta dos teus braços
neste papel-herança
quando todo o coração esquece
a passagem do verso.

abríssemos nós o corpo
à metamorfose do poema
e talvez
[mesmo que com ruas silenciosas
os homens esquecendo-se de nós
e todas as metáforas vencidas]
talvez
fôssemos ainda fotografia na carteira
bolso esquerdo do casaco
sem peso moldura ou impressão digital

o tempo permaneceria avulso
quase secreto:
só o mundo do lado de fora envelhece.


Yan Tiersen, rue des cascades

sexta-feira, 13 de abril de 2012

desvio de névoa noturna para olhos que veem na obscuridade


Consegui esta coisa miraculosa […]de que não há outro exemplo aqui: criar dentro do Amor. Criar, você compreende? A criação, criação, CRIAÇÃO, CRIAÇÃO! A criação perfeita, com todas as suas exigências, é intimamente ligada, transubstanciada ao Amor!
Vinicius de Moraes, Correspondência

fotografia de jorge pimenta


sentamo-nos no silêncio
e trocámos palavras escritas
sem tinta aparo ou papel,
somente refrões entornados
no sumo do lençol

inaugurámos a fome
a perna que toca à esquerda da carícia
e de rasura em rasura
mordemos gomos de alvoradas
lábios acesos e ventres nus

dormimos, por fim,
como se não tivéssemos sono
a dois braços de distância do frio
da terra
e de todas as mortes.

eu sempre acreditei na combustão do corpo
sobre a pele do poema
mas sei dos arco-íris guardados
para o tempo da solidão

 [tiquetaque
tiquetaque
tiquetaque]

apagaste a luz depois de entrares em mim
para que não adivinhasse que saíste:
a minha loucura dobra-se nas tuas mãos
enquanto o tempo habita os vazios
do mel envenenado
na soleira da minha porta.


Caros amigos, o Paulo Cheng tem, no seu blogue, uma rubrica em que os próprios seguidores são os dinamizadores diretos. Intitula-se turismo e prevê que, à vez, e por convite, alguns dos seus leitores apresentem, com texto e fotos, a sua cidade. Desta vez, o privilégio foi meu. Neste link encontrarão o livre-trânsito para um pouco do que Braga, a minha cidade, tem para oferecer:
http://www.paulocheng.com/2012/04/turismo-com-jorge-pimenta.html#more 

radiohead, last flowers

sexta-feira, 6 de abril de 2012

amor triste II


seguro o teu olhar numa mão
e a tristeza na outra
[etiquetas XVII, polos e extravios, de 06.01.2012]

fotografia de jorge pimenta


procuro o beijo
o pólen sem gretas
e a janela que abre
carícias ao corpo

mas o amor triste
balança gomos de primavera
em cabos elétricos
arrancando a luz ao quarto
e as engrenagens ao coração.

já reparaste como esta noite
as cerejas perderam a cor
nos versos da tua boca?


the joker’s daughter, lucid

[segunda versão do texto amor triste, de 2008]