quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

o circo


pedra pão
vidro fogo
sombra luz
vida vida

fotografia de José Figueira


olhaste por cima do ombro
e adivinhaste os nomes nas cadeiras,
na hora em que o sangue se torna mais rápido
e interrompe a linha que preenche o tempo.

é a hora.
esqueces a pele das palavras
e toda a vulgaridade da linguagem
como a tela suja que sacode o orvalho
para debaixo dos pés.
música vozes aplausos
respiração suspensa,
gritos mudos,
suspiros vozeados,
aplausos
assobios
aplausos
embalados pela vida que inaugura instantes,
os mesmos que esquecem
o frio da cama
o colchão sem molas
a frieza do chicote
ou a itinerância dos passos.
a ilusão
[não dessa que os poetas gastam nos seus versos,
mas da outra,
da verdadeira,
da que transforma o chão de vidros e ácido
em leite e pão],
a ilusão é sonâmbula.

são duas horas
um tempo que o relógio não contou
um tempo suspenso
um tempo em que o mundo girou em torno das tuas mãos,
nesse erguer de pernas
naquele vómito de fogo
no salto acrobático sem rede,
por entre respirações incompletas
arremessos de risos
e disparos de gargalhadas.
são duas horas
que apagam a casa movediça
e escalam precipícios com as pontas dos dedos
enquanto a cabeça estoura entre os dentes das feras.

Texto publicado na rubrica Amigo Oculto, no blogue Trem da Lira (http://tremdalira.blogspot.com/), da Cris de Souza, em 23 de dezembro de 2011, sob o pseudónimo Eurico Portugal.

marillion, out of this world

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

variação sobre a noite de consoada: a primeira ceia



Eu sentia-me vagamente cão. Nem admira. Quando um homem tem o coração cheio de epitáfios e vê as outras pessoas felizes, é natural que se sinta cão.
Gente que sai das pastelarias irradiando espírito natalício; votos de boas-festas; música de sinos... aquilo produzia-me um vácuo interior pior do que a fome.
Altino Tojal, Noite de Consoada, in Os Putos


Ana Margarida Pimenta [2011]

chego-me à noite
que guarda o sabor do pão e da terra
sabes que já acreditei que o homem pode ser feliz
como nos natais-meninos
com lábios apertados
brincadeiras de açúcar
e pinhões enrolados nos dedos
bem ali no tempo das fotografias?

do lado de dentro
há risos, abraços, lábios
e no balanço das pálpebras
todas as palavras
[mesmo as que um dia os homens rasgaram]
aquecem no fogo das gargantas.
há silêncios, hiatos, mãos vazias
nos talheres em lugares distantes
nos erros por corrigir
ou na cera que escorre junto às veias.

do lado de fora
uma luz no interior dos pinheiros
atravessa a seiva
trepa os braços brancos
e toca a estrela de belém,
candeia a acender estradas de alcatrão pelo céu
de onde descem rostos
magros, silentes, alguns já sem memória
vidas que esquecemos – uns
vidas que nunca conheceremos – outros
vidas que vivemos – todos.

é a noite
é o tempo parado, sem existir,
tempo quase gente,
no milagre da sagrada loucura
em que lambemos os sonhos com as pontas dos dedos:
no dia seguinte, o menino já terá nascido,
no dia seguinte, ainda será natal.

alguma vez precisaremos de mentiras
se acreditarmos nas coisas simples?

the pogues & kirsty maccoll, fairytale of new york


i've got a feeling
this year's for me and you
so Happy Christmas
i love you baby
i can see a better time
when all our dreams come true

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

do tempo, do espaço e das mãos que [n]os seguram


Foi para ti/ que desfolhei a chuva
para ti soltei o perfume da terra
toquei no nada/ e para ti foi tudo
Mia Couto, Para ti

alexandre parrot


o lugar é incerto mas foi nele que escavei o fogo.

tu eras névoa com sementes a treparem a pele
enquanto segredos escorriam pelas cerejas dos lábios
nesses dias em que pernoitavas em mim.
o tempo, o do corpo,
umas vezes nu com pássaros na espessura
outras trajando a luz que entrava pelo vidro
à procura de pedaços de céu
e agitações lunares.
e eu fui árvore mastro navegação
com as mãos a segurar o olhar
para não ver os silêncios que ardiam
para não ouvir as palavras que iludiam.

no quarto, a respiração dos invernos do corpo
sem peso sem forma sem textura
escondendo meias vidas
pressentindo todas as vidas
ali, aqui, em qualquer lugar.
nesse tempo não conheci calendários
despedi pontos cardeais
e os dias foram uma sucessão de ar
sem início e sem fim
como se as manhãs e as noites fossem um só corpo,
calçando almofadas sobre as lâminas da realidade.
e foi aí, no tempo incerto dos nossos lugares,
que os lábios foram lábios
que a pele se fez pele

e o sonho toda a linguagem que dispensa bocas para ser verdade.

red house painters, song for a blue guitar

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

ponto negro para páginas brancas de claridade duvidosa


Éramos feitos das mesmas palavras impossíveis, impronunciáveis.
J. L. Peixoto, Cemitério de Pianos

fotografia de Pedro Ferreira

ponto negro.
marca mínima a balouçar na pequenez,
tinta, terra ou pedaço de pele?
ponto negro. apenas.
nenhuma pergunta ou inquietação
decifra o informulado,
e contudo existe
nas costas de um ponto: negro, simples, simplesmente,
a horas diversas, em dias diferentes,
numa qualquer estação do corpo.

ponto negro. quase insignificante.
voltam as perguntas a arrancar silêncios
as exclamações a revolver utopias
mas a distância entre a árvore e o inverno
é a mesma que a separa do estio,
a mesma que distingue o fruto adivinhado
do fruto roído.
e o equilíbrio é labirinto suspenso,
rede de todos os caminhos,
como a noite que não sabe para onde ir
e que não cessa, nunca,
no poema
nas mãos
no ponto negro.

são tantas as vidas que nunca viveremos
neste ponto negro
[a tinta sempre extingue o seu sulco].

rodrigo leão com thiago pethit, o fio da vida

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

boca incompleta e todas as figuras menores

A poesia vai acabar, os poetas
vão ser colocados em lugares mais úteis.
Por exemplo, observadores de pássaros
(enquanto os pássaros não acabarem).
Manuel Pina


fotografia de Jorge Pimenta

boca incompleta.
os cabelos caem sobre a fronte
alagados em silêncio.
há copos, risos
dentes brancos, dentes escuros
lábios menstruados
e todas as formas,
mesmo as mais complexas,
perdem sanidade, ímpeto
em suserano servilismo.

boca
[silêncio na página]
palimpsesto
[cântico na terra]

com a mão, agita-se
oceanos negros e veias,
navios anónimos e invernos,
uns e outros noturnos, curvados, quase vencidos
pela morte que ousaram combater
em verso – esse álcool louco do poeta
adormecido em cada tulipa das estepes.

boca incompleta.
o cachecol é levantado para o pescoço
acaricia a garganta
atravessa o inverno
e ressuscita o cadáver
na única forma humana que não tarda: o poema.

com a poesia se constrói o homem e as suas cidades.
com a poesia toda a boca é incompleta.

david bowie, wild is the wind