sexta-feira, 30 de setembro de 2011

solilóquio para balas e arremessos no revólver da felicidade e de outras utopias

marcelo tabach

só por costume social deveremos desejar a alguém que seja feliz; [...] só se deve desejar a alguém que se cumpra: e cumprir-se inclui a desgraça e a sua superação.
agostinho da silva

há dias em que a felicidade se despede
dos compêndios de uma ciência menor
para se refugiar numa chávena de café
entre o calor do desejo e a nuvem de um cigarro
cada vez mais negra
cada vez mais distante
exibindo apenas a borra no fundo da cerâmica
que a sorvos breves
procurei trazer para dentro de mim.
nenhuma mentira muitas vezes pronunciada se torna verdade
e os dentes caem sempre, um a um,
cansados dos golpes que a palavra desfere
súbita, cínica, sodomita.

há dias em que a felicidade me visita no café
ao fim da tarde
na penumbra que aquece as mãos
e acende escombros em cada sorriso de tinta e palavras.
não, não inventei a insónia
nem sei como é o rosto da morte
na arquitetura imperfeita dos sonhos,
cada vez mais burgueses e anafados
em bocas que persistem em perder o marfim.

há dias em que a felicidade me visita…
sim, eu sei,
é ao fim da tarde que se morre de amores
e o paraíso é somente uma insinuação de pele,
bem ali,
na mesa de café de uma qualquer cidade.


rodrigo leão & daniel melingo, no sè nada

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

retrato de homem para equinócios sem voz: segredos e lábios

evan leavitt, no more passengers



“[…] daí é que nos veio a única certeza que temos […]
em uma noite tão profunda como aquela nos perderemos.”
José Saramago, Todos os Nomes

é hoje o dia
equinócio, outono, setembro
e todo o tempo que se desprende do que há de morrer.

o meu espanto é maior do que a boca
porque caibo numa folha seca
e no fruto vermelho que se estende na erva
depois de rejeitado pela mão que o desejou.
é hoje o dia
e as manhãs despedem olhares
sobre um vento a endurecer os rostos
e luzes de cais a anunciar partidas,
apenas o perfume das orquídeas permanece
como derradeira verdade dos sentidos.

e deixamos de confiar no poema
no poeta
na metáfora
e em todas as mentiras
neste equinócio
com pronúncia de outono
e voz de setembro esquecido
[de repente parece que o mundo murchou
para os que amam por acaso
nestes dias lentos].

é hoje o dia:
já asfixiei alguns sonhos
e deixei de responder à saudade;
é que o coração não tem estações
e seria criminoso deixá-lo morrer de frio.

radiohead, weired fishes

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

canção fria para estações despovoadas

há momentos em que temos de perder
para sabermos o que não podemos deixar de ganhar.

evan leavitt, packing, up, railroad, suitcase, trees

há uma inquietação a lavar-nos
os pomares do nosso verão.
é este vento, esta corrente de ar
ou todo o oxigénio gasto nas palavras
que idolatram silêncios e angústias?
recordo os corpos exaustos
[não tanto como a culpa que não tínhamos]
e a boca seca do bailado
a que atirávamos as nossas verdades.
e todas as respostas cegas nos pousaram nas mãos
com a violência da lucidez
e a nudez de uvas por fermentar no peito.

contaram-me depois
que guardaste as lágrimas na garganta
e atiraste o coração aos cabos de electricidade
que iluminam os passos e os pés,
mesmo que em estações brancas
a queimar os dedos
e a plagiar imagens à memória.
cicatrizei o tempo
e a cada perdão roubado
contrapunha um verso
cada vez mais sujo,
cada vez mais imperfeito
como os borrões de sangue que ousam escrever
todos os dias e todas as ruas que habitaste.

há uma inquietação a lavar-nos
os pomares do nosso verão.
hoje o dia deitou-se mais cedo
e a morte deu dois passos para diante,
bem ali, diante da cotovia que bebe,
sôfrega,
o suco aquecido das frutas
de toda uma estação.

audiomachine, an unfinished life

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

etiquetas XVI

portel, alentejo



I. a casa


ao roberto de lima
cidadão do imenso mundo,
que é o coração

assim é o tecto
sem telha, vidro ou cal
a aproximar o olhar das estrelas
e do seu rasto prometido.
o chão?
todo o universo,
duro resistente intransponível,
como todas as almas sem metáfora
que se moldam
pelas palavras ditas, lidas, pressentidas.
no interior, seja noite ou dia,
todas as histórias
anunciam direcções e rotas
com que se encantam os incêndios
e se iludem todas as urgências.

é este o enigma da arquitectura:
toda a casa
que pensa e sente
ensina a duvidar.


II. conjuração
a imagem percorre
os labirintos de água
onde mergulhamos os pés.

é chegada a era do gelo:
a plenitude não cabe no verso
e o tempo não é de ninguém.


III. as linhas da fábula
saltito de renascer em renascer
à espera de iludir as mãos
de onde tombam pétalas em chamas
e sonhos oxidados.

só na certeza da morte
compreendemos a vida.

luís represas & pablo milanés, feiticeira