domingo, 31 de janeiro de 2010

rebentação


todo o aroma do corpo
senti-o dentro de mim
quando aquele suspiro de sangue e sonho
se projectou sobre a janela
onde escondemos o sono da derrota
e rejubilámos com a vigília da ilusão

sonâmbulo de afecto e luz
o dia recém-chegado
flutuou
ébrio de uma serena melancolia
sobre a imensa transparência
do sangue e da pele

para trás a noite
e as margens sinuosas
junto de escarpas salgadas
onde o mar
rugindo furioso
batera na rocha dois corpos em carne viva

entre a noite esventrada
e o dia esquecido
apenas destroços de pele
flutuando sobre águas
que perderam a voz
nos fiordes do silêncio

Conversas com letras

Foi há já mais de um mês (11 de Dezembro) que estive na Biblioteca da Escola EB 2/3 de Rio Caldo para uma conversa com jovens de 16, 17 e 18 anos sobre livros, leitura e, muito especialmente, poesia.
A minha ligação àquela freguesia do Gerês vem já de há um par de anos, por ocasião da publicação do meu primeiro livro de poesia, A-Simetria das Formas: o espelho e o reflexo. Nesse então, a directora daquele espaço pedagógico, Dra. Teresa Brandão, tomando contacto com o livro, promoveu uma oficina de ilustração e poesia para alunos do 8.º ano, para o que convidou a ilustradora, Teresa Almeida, e eu próprio.
Quase dois anos volvidos, a ideia passava por cruzar experiências de leitura e de vida com jovens pré-universitários, num formato mais próximo da conversa naturalista do que da palestra. E assim foi: num ambiente descontraído e iluminado por um sol de inverno espelhando matizes de luz sobre a albufeira da Caniçada, as palavras rolaram pela sala à medida dos ritmos, dos interesses, da curiosidade e das expectativas de cada um. No final, a sensação de que o tempo se havia rido de nós, tão rápido os 90 minutos da sessão escoaram.
De tudo, para lá do calor dos anfitriões, guardo uma recordação que jamais perderei: a declamação de textos inéditos retirados do meu extinto "Circum-viagem". A cada palavra dita, abertas ou veladas, as emoções ondearam numa leveza para sempre aberta.


Na semana passada, quando vagueava pelo universo dos blogues, deparei-me, surprendentemente, com o da Escola de Rio Caldo, onde pululava um registo breve sobre o acontecimento. Aqui o seu testemunho:


"JORGE PIMENTA NA NOSSA ESCOLA
O escritor Jorge Pimenta esteve na Biblioteca Escolar Ramalho Ortigão no dia onze de Dezembro onde esteve à conversa com os alunos do 11ºA, 12ºA e 12ºCP.
O encontro possibilitou aos alunos o conhecimento do percurso literário do escritor e, também, houve lugar para uma pequena surpresa para o escritor Jorge Pimenta. Surpresa? Sim! Alguns dos alunos presentes declamaram, de forma original, poemas da autoria do escritor." - http://tesourodaescola.blogspot.com/2009/12/inicio-jorge-pimenta-na-nossa-escola.html

Na despedida, a promessa de regressar quando "Circum-viagem" (título da próxima publicação) tiver nascido.

A todos, um bem-hajam e até breve!

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

(des)encontro

para quê teres lábios de fogo
se a minha boca é o mar?



Foto de Márcia Cristina Lio Magalhães

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010


Lisa Germano, The darkest night of all
"Passei os braços sobre os ombros da mulher de negro. Desci as minhas mãos ao longo das suas costas. Senti-a dentro dos meus braços. O seu peito tocava o meu peito. O tempo deixou de existir. O silêncio deixou de existir. As palavras deixaram de existir. A mulher de negro encostou a testa ao meu ombro. Eu sentia todo o seu corpo velho, frágil, dentro dos meus braços. Abraçando o negro, existíamos antes, durante e depois do futuro."

Excerto do conto "A mulher de negro" (in Cal), de José Luís Peixoto



terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Apolo

Ainda que
presas à dor
agarradas às grades do silêncio
suspensas no mar dos olhos
ou por entre fios de luz,
as estrelas hão-de continuar a brilhar
na palma da mão.

Esta é a melhor forma
que o ser humano encontrou
de sonhar.


Rodrigo Leão, Histórias

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

botânica

a urgência de ser flor
e de tocar o fruto
fez-me esquecer
que a verticalidade
começa na raiz

sábado, 23 de janeiro de 2010


Red House Painters, Song for a Blue Guitar

a sombra do tempo


Tempo,
por que te tornas invisível
àqueles que te levam a mão
ao encontro
do rosto
do contorno frágil dos olhos
ou das linhas finas dos lábios?

Sei-o bem,
os deuses não têm imagens…
(aprendi-o no santinho da comunhão);
nunca quiseste ser de todos o maior
por te recusares a desvelar
o rosto da honestidade
no fogo existencial.

Mas,
se a translação
que une o choro do berço
ao suspiro do esquife
a todos concede o vazio de si mesmo,
por que não me gritaste
o traço definido do teu propósito,
ora sereno ora selvagem?
Por que me fizeste crer
que o vinho que me escorria na boca
era o olvido do ser?

Deixaste-me a vã ilusão de te ter,
ó tempo...
bebi-te… comi-te… beijei-te… amei-te,
e na sofreguidão do banquete
julguei que te consumia.

Acabaste penetrando o coração arquejante
e com o perfume da obscuridade
fundiste, apenas,
o desejo de ser luz
a uma gota de sombra.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Ícaro perdeu as asas

renegando a farsa do ser
apontou à chave perdida
e num Olimpo de pedra
vislumbrou a morada de ouro

caminhava com estrelas nas mãos
e o sol nos lábios
crendo que só da viagem
nasceria a palavra sem pó

no sonambulismo da sede
entoava a melodia da terra
e mordia o ventre dos frutos
sempre através de veias de água

o coração de poeta
agarrava o vento
acordando o alfabeto
num caderno de notas dispersas

e o poema desfiava um novelo
onde o arco-íris inscrevia a luz
como se os deuses maiores
habitassem a casa sem sombras

no bailado dos signos
cria que o verso escondia a ilha
sob o hálito da terra
e todo o amplexo cósmico

de água os seus olhos
de terra a sua boca
e a pequenez dos homens
desvelava-se na nudez material

pura ilusão
a palavra reconstrói o espaço
e o poema constrói o homem
muito para lá do tempo

esquecera-se do tempo
como o cavalo do carrossel
galopando no estrado ondulante
não vê a prancha que o sustém

e assim na Primavera dos dias
a hora desenha-se frágil
enquanto o mar salpica de sangue
a folha branca de espuma

resta-lhe o silêncio
resta-lhe a ébria escuridão de um inverno seco



Madredeus, Ao longe o mar

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

por... nada...

por um olhar
que se despe
ocultando a nudez

por uma boca
que escorre a seiva
num deserto de gerânios

por um sorriso
que oferece o beijo
sem o viço do lábio

por uma mão
que esculpe o coração
com cinzel de pedra

por um abraço
que aproxima oceanos
onde não sei navegar

por uma mulher
feita de sonho
e desfeita na desilusão

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010


Kings of Convenience, Homesick

luz e sombra

quem diz que
todas as árvores dão fruto?

quem diz que
o aço não pode florir?

afinal,
a luz e a sombra
sempre foram os dois sentidos
de uma mesma estrada.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010


Blackfield, My Gift of Silence

daltonismo

por que tenho de viajar
sobre renques de braços nus
e rostos de água salgada
se os futos e os sorrisos
se perderam
algures
entre a lâmina e o sangue?

Eis-me aqui, pois, prisioneiro
num universo que se contorce sobre si mesmo.

a porta?
um coração a preto e branco.


domingo, 17 de janeiro de 2010

Cabotagem

Fecha o olhar
retira os guizos da voz
e esconde as mãos da saudade,

para quê alçar o fogo-de-artifício
com que celebras o mundo
se é sempre tão difícil manteres-te de pé
sobre a sua linha escura sem raiz?

Schiu…
bate com cuidado a porta do céu;
não quero acordar o mar.



God Is an Astronaut, Infinite Horizons

Regresso

Passaram-se já quase dois meses desde que me despedi das minhas viagens plurais (circum-viagem). Não há, todavia, filho do mar que dele se ausente por muito tempo... pescador, marinheiro ou simplesmente (aprendiz de) poeta, o mar torna-se mais forte que o desejo de o matar...
E tudo porque, como o mar sacia a fome de peixe ou a sede de aventura, é também o mar que sacia a voz, sempre seca e sedenta de canto, de verso, de poesia, num movimento que tem tanto de sensorial como de verbal.
Em Circum-viagem, fui Neptuno, Jasão e Ulisses; em Viagensdeluzesombra pretendo, apenas, ser Jorge, alguém que, com o olhar sobre o sal imenso que cruza, aproximando horizontes, rostos e vozes, sabe que tão importante como ir é regressar. Qualquer que seja a viagem, ela apenas se cumpre no dia em que voltemos ao ponto de partida, renovados, reforçados, transformados, mas guardando, na essência, aquilo que nos conduziu ao molhe de embarque, numa qualquer manhã brumosa ou soalheira, e nos compeliu a ser embarcação, feita canto e homem.
Nesta viagem, espero voltar a cruzar-me com outras embarcações, com diferentes marinheiros e desconhecidas marés, com gente que passa e gente que fica; acredito poder voltar a tocar vozes, mãos, rostos e emoções, conhecidas ou meramente desveladas pela sede incessante de viajar para ser.
Viagensdeluzesombra iniciam um novo ciclo; não sei se é um recomeço, se uma renovação, se uma continuidade, se, apenas e só, o cumprimento de um desejo: o de não morrer para a escrita e para o mundo... Sei bem como a tinta sobre a superfície branca pode resgatar e redimir; sei também que pode, qual lâmina afiada, esquartejar o verso e a mão que o anima... (oh, se eu não o sei...). Mas, mesmo sabendo como Ti João das Almas, personagem de Bernardo Santareno em O Lugre, tinha razão ("o mar tomou conta dele, queimou-lhe as tripas com o sal, dobrou-o todo, encheu-lhe a alma de ventos ruins... fez dele isto, um bocado de desperdício sujo..."), que há-de fazer aquele que se desnuda através da palavra líquida, senão alçar a voz para que o fogo verbal não arda dentro de si, se agarre às artérias e, jorrando golfadas de fel, lhe consuma o coração, numa batalha desigual e injusta... Hoje, mais que nunca, percebo que nunca se escreve para si mesmo. Ouvi-o dos diferentes mestres e das muitas cartas-de-marear que fui consultando ao longo da viagem ("Malvado, que hás-de dar cabo de mim! Tantas me hás-de fazer... Maroto! Meter-se pelo mar dentro, sozinho! Se não dão conta, morrias-me ali afogadinho, ladrão!... - in "O Mar", de Miguel Torga); aprendi-o quando, como o Silvino de Torga, quase dava corpo às palavras de Mariana na mesma obra: "É o mar que os cria, e é o mar que os leva...".
Assumo, de novo o mar; abro os braços, como outrora, para os horizontes que esconde; encho os pulmões e inundo o corpo de maresia. Ainda assim, jamais sozinho. Quem sabe assim o sol volte a acender as velas da nau poética e existencial...

Foto de Márcia Magalhães

"Viajo para escrever
Escrevo para recordar
Recordo para sonhar
Sonho para não deixar de viver..."