terça-feira, 31 de julho de 2012

rosa-íris para cegueira e lento entardecer


Não se deve sonhar: o momento de consciência que acompanha o acordar é o sofrimento mais intenso. Mas não nos acontece muitas vezes, e os sonhos não duram muito tempo: mais não somos do que animais cansados.

Primo Levi, Se isto é um homem

fotografia de jorge pimenta


são, sim, como recortes de jornal,
notícias que fabricámos com o interior das mãos
porque só os homens sabem onde se esconde a mentira,
lâmpada de veludo a cegar retinas
e toda a vida que guardam em pele húmida
do lado de dentro da nuvem
do lado de fora da chuva.

são, sim, polaroids sépia,
voz em boca fria à procura do poema
como se a palavra amaciasse os lábios
no leito infinito de deus;
mas é apenas pó de sílabas a bater num espaço
que não é de ninguém.

e por entre pedaços e tons
rugem probabilidades e efeitos
sem pontuação.
“nada é definitivo” – repetíamos
fingindo o verão da pele
e os frutos a amadurecer fora da estação,
mas o escoar das raízes
atravessou o ponto negro em fundo azul
engasgado de vida
(os sonhos são como cometas:
cheiram ao fundo do corpo
onde em tempos se reconheceu asas e colinas de fogo
para logo se despedaçarem no chão
a que a morte deu o nome de amor).

há sempre os que vivem – dizes com pássaros caídos na voz
há sempre os que resistem – os pássaros já não têm sombra
há sempre os que voltam – o que são os pássaros?

nenhuma asa se confunde com o céu
neste fim de página a deslizar pelas letras
escritas em cinza com as pontas dos dedos:
também o tempo acaba por adormecer.

pearl jam, just breathe

quinta-feira, 19 de julho de 2012

sabe-que-não-sabe: diálogo em repouso menor, monólogo em fingimento maior


And he who forgets is destined to remember
Pearl Jam, Nothing Man


Fotografia de Jorge Pimenta



há sempre uma brisa
a repousar nos tímpanos
do grande mistério lírico.

os poemas também morrem de amores
como os homens
os deuses
a gramática
e todas as generalizações
com que enganamos a vida,
sobretudo a morte.

o poeta nada sabe de uma
crê tudo saber da outra,
mas de amor só ouviu falar
e neste sabe-que-não-sabe
ensina a loucura
enquanto os peixes acasalam
em aquários de água doce
porque há palavras que ardem na boca
antes de chegarem ao mar.

e pergunta-se
por que não consegue nadar?
e quer saber
por que as palavras são salgadas
e queimam os livros
que lhe crescem nas pontas dos dedos?

as pernas agitam-se sobre as linhas
mas as rimas roubam-lhe o chão
e o verso:

serei a mentira mais grosseira de deus?

o criador, cansado de amar com palavras,
atravessa a existência lenta
uma e outra vez
na síntese dolorosa de todas as coisas:

apenas homem a ferir palavras
e de peixe apenas sabes a morte pela boca.
apenas homem.

o dia fechou-se atrás de si,
escolheu sair do tempo.
já de costas
nem percebe aquele pequeno poema
a pestanejar nuvens
cada vez mais longe dos lábios.

Pearl Jam, Nothingman

sexta-feira, 6 de julho de 2012

etiquetas XX


anacronismo I
se o amor não tem tempo,
será possível não envelhecer?


fotografia de jorge pimenta



anacronismo II
o tempo é tudo o que deixamos de nomear
o amor – o que não esqueceremos


fotografia de jorge pimenta



iconoclastia
em cada palavra
o perdão.
eis porque idolatramos o silêncio.


fotografia de jorge pimenta



adamastor
a tempestade não é a metáfora do medo
mas a prova da existência do mar.


fotografia de jorge pimenta



aurora boreal
onde habita hoje
a cor poente
que aprendeu a arder no teu olhar?

fotografia de jorge pimenta



morrissey, you were good in your times