sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

como nos poemas


                                          jorge molder


e eis como os dias não se fazem apenas dias:
meteorológicos, mitológicos, ontológicos e ilógicos
[e tudo o mais que o silêncio aborte da boca do mundo]
são resina a escorrer à beira-dor
em passo lento
devastador, cirúrgico, operário
consumindo a língua dos segredos
cinzelados por mãos que se desprenderam do corpo.

sobrevivem os dias.
e sou manhã, tarde e noite dentro do dia.
sobrevive o corpo.
e sou o que não morre mas que agride mais do que afaga.

longe do silêncio dos dias e do corpo
as mãos escarnecem
como se a vida começasse naquele hiato
sem sermão, pregador, ofício ou deus.
falsa liberdade esta, a retinir nos tímpanos
[as sereias ainda são todo o canto que engana o mar].
mas já sem mar
e a léguas do sonho,
as mãos enrijecem, apodrecem, quebram na areia
que lhes prometera
o voo sem órbita e a viagem sem voo.

e o corpo tem a saudade tatuada
e o corpo amordaça a boca
e o corpo perde o tacto
no motim das mãos que impõem a despedida dos dias.
e os dias são fábulas
e os dias são narrativas sem prosa
e os dias são personagens  de ficção
sobre a geografia das mãos sem capital.

oh, se eu conhecesse a fundo as lendas dos dias
os episódios do corpo,
as estórias insulares das mãos
restauraria a língua que nos trouxe o arrepio
sem calendário:
amarmo-nos como nos poemas.

[saberão os homens viver
como os dias?]

a touch of spice [ost] up at the attic

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

morfina

                                           braga [pormenor]

já não sei quantas vezes
me escorreu dos dedos a tua morte.
ficava imóvel a olhar as mãos como se
em cada linha exangue adormecesse o perdão.
sei lá se deves acreditar…
os poetas vendem sempre os sonhos
que plantaram do lado de fora do coração,

mesmo que com o estore fechado.
deixa que a agulha rasgue a pele,
penetre as veias emaranhadas
jorre o sangue em golfadas
de gozo, de luxúria
até que o corpo arda em orgasmos
e se tolde a imagem em negro.

o fósforo risca a noite e acende o rosto.
tem cara feia, mau hálito e não toma banho.
falta-lhe ser homem,
aguçar o sexo
gastar a saliva na pele olorosa
onde a primavera esconde os segredos
que jasão julgou serem de ouro
[qual quê? apenas gemidos em prosa perdida].
é um poeta. um semi-homem. uma ave quase-louca.

já não sei o que te dizer
parece que todas as palavras arderam.
gastou-se a imagem em bancos de nevoeiro
e o farol queda-se em silêncio
[malditas âncoras, malditas
enrolam-se em sargaço
que vem apodrecer na praia
e o sal não te marca mais o corpo].
bocejam os poetas, esquecidos nos escolhos.

a loucura é a única certeza dos amantes.
o amor é a derradeira mentira dos poetas.

laura alberto & jorge pimenta

the legendary tiger man, naked blues

sábado, 22 de janeiro de 2011

etiquetas X


I. tese / contratese
“só para nós não morre aquilo que morre connosco”
[gabriele d’annunzio]

saibamos,
pois,
viver tudo o que ainda não nos morreu.

                                                    la coruña, espanha

II. brevidade
línguas de nevoeiro
depõem a humidade na tua janela.
boca lábios vulva
são todos os nomes que
massajam o orvalho dos lábios
agitam a pacatez do sangue
e devoram a madrugada resinosa dos pinheiros
enquanto o corpo acende em cio nómada.

na fogueira branca arde a breve eternidade.

                                                                                                        cabo da roca

III. expedição
escalei a tua morte
com versos nas cordas
e flores nas mãos;
apaguei a memória
com álcool no coração
e fumo no peito.

                                          foz do rio minho, caminha [pormenor]

IV. conjurados
caem as palavras
rompe-se o verso
perde-se a voz
estoura o peito.

e agora,
sem a ilha a boiar nos olhos,
resta-me vaguear sobre o pó
gasto pelas unhas
de um gato sem nome.

                                          foz do rio minho, caminha [pormenor]



roger waters, it's a miracle

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

viagem

                                          henri matisse, la joie de vivre

no dia em que te der as mãos
e toda a minha certeza
a casa não será apenas a pedra que nos aquece.
dar-te-ei os livros e as recordações
e todos os mapas do meu corpo
onde a geografia
seja apenas bicicleta em viagem pelo mundo

e tu todas as cidades
e todas as estradas
e todos os telhados
que saberei percorrer
nas rodas dos lábios
e no guiador dos prazeres
[sempre sem travões].

no dia em que te der as mãos
todas as embarcações serão o porto.

no dia que te der as mãos
e toda minha clareza
a casa não será apenas a pena que nos aparece.
dar-te-ei os lírios e as revelações
e todos os meios do meu corpo
onde a grafologia
seja apenas borboleta em viagem pelo mundo

e tu todas as paisagens
e todas as floradas
e todos os terrenos
que sentirei percorrer
nas rosas dos lábios
e no gerador dos prazeres
[sempre sem trovões].

no dia em que te der as mãos
todas as expedições serão o gozo.

(Cris de Souza & Jorge Pimenta)


madredeus, ao longe o mar

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

bilhete de identidade

                                   jorge molder

não sei quando nasci
[a memória dormia ainda na ponta dos pés de uma bailarina].
sei que as manhãs já sacralizavam o tempo
com candeias de bruma pela estrada.
nada mudou;
apenas depuseram o orvalho
sobre o nome
e abriram a cortina para a cidade adormecida.
nem um porto
nem um lírio
nem um cavalo selvagem.

e a primavera louca se fizera
como os pássaros que se desprendem das asas
aceitando dividir a casa
com coágulos do nevoeiro.
talvez já não saibam delimitar as estrelas com a mão
neste hospício de cal branca
onde as vísceras e os ossos
aquecem a noite e os silêncios.
perdeu o manto
e deixou de sonhar
e todo o tempo se fez velho.

não sei quando nasci.
como ontem,
hoje o nome estremece no arquivo
ao lado de anagramas e estações do ano.
como ontem,
hoje o rosto no espelho
assobia lugares estranhos.
hoje,
ao contrário de ontem,
esta carne mascara-se de cera
e despede os músculos e a alma
numa ejaculação que engravida a terra e o vinho
[tenho-os secretamente guardados num frasco de vidro
com uma etiqueta perfumada.
creio que tem escrito “coração”…
ou “coroação”?...].

toda a mão que rasga o útero merece aprender a morrer.
mas foi ela um dia
[talvez o de aniversário]
que mordeu os lábios do vento
e cuspiu a terra para as sementes
[a desilusão nidifica em árvores tão estranhas].

e a morte escondeu-se no alfabeto.
e a primavera voltou a ser uma estação do ano.
e a mão solitária costurou todo o corpo,
com a paciência magra que denunciou o crucifixo.
aprendeu a sorrir para a lua
com os dentes brancos de margaridas
que caíam lentamente sobre o perdão.

não sei quando nasci…
sei que todos os homens são loucos.


muse, unintended

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

perfumes

                                berenika

perdi, um dia, o mar a gemer sob as aves
mas ainda recordo o brado do promontório.

não sei porquê,
desdenho de todo o âmbar da memória
mas temo a urgência do olvido.

os seus olhos de sal
e as unhas de pedra
onde se espreguiçam o vento e o tempo
fizeram falésia no meu peito;
investem com frémito conta a pele
decapitando os caminhos que percorri
e assombrando os que não ousei pisar.

hoje, são os atalhos além da maré
que soletram o meu nome.
terei ido a tempo de assistir ao parto das árvores
que sabem germinar flores e frutos
no silêncio do mar?

hoje, em tudo creio.
[apenas duvido da viagem].



evanthia reboustica, the railway station
[tema do filme a touch of spice, realizado por tassos boulmetis]

nota: a touch of spice ["politiki kouzina"] é uma pélícula grega, com a assinatura de tassos boulmetis (2003), que toca a ligação secular (sempre tensa, no mínimo) entre as culturas grega e turca. fanis, um jovem grego, aprende com o avô, cozinheiro de profissão em istambul, que, tal como a comida, também a vida deve ser bem condimentada. acaba, ele próprio, por se tornar cozinheiro e seguir a sua vida. mais de 30 anos volvidos, fanis regressa às origens, onde reencontra o avô e o amor da sua vida; nesta confrontação com o tempo e consigo mesmo, acaba por chegar a uma conclusão: esquecera-se de temperar a sua vida.
a banda sonora tem a assinatura de evanthia reboustika. recupera a mais fina tradição bizantina na sonoridade e na delicadeza sofrida da voz. é impossível resistir-lhe.
agradeço à minha querida amiga eleni ter-me ajudado/ajudar-me a compreender um universo cultural que apenas tocara através dos canais informativos e pelos compêndios de história.
um beijo, eleni!


evanthia reboustica, allspice

[tema do filme a touch of spice, realizado por tassos boulmetis]

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

os seis sentidos

                                                                 fotografia de pedro polónio,
                                                                 http://club-silencio.blogspot.com/

I. olfacto
amanhã quando acordares, não
te esqueças de fechar os olhos
guarda o nosso cheiro no vidro da mesinha.

II. audição
martelo, bigorna, tímpano.
a nova retina do ser
nasce do som do teu bater de asas.

III. paladar
amanhã, banha-te na água das
nossas lágrimas. arrumadas na prateleira
estão as línguas. em sal.

IV. tacto
seda ou areia,
só com o teu corpo
se escreve a palavra “pele”.

V. visão
amanhã quando te deitares
pousa os olhos sobre os destroços
em que nos guardamos.

VI. intuição
mesmo não sabendo se existes,
sinto.
e se não basta…
[laura alberto & jorge pimenta]


portishead, machine gun

sur-realidades

                                berenika

– Tu, quando estás comigo és surrealista.
– Surrealista, simbolista, decadentista… Chovem os sufixos gramaticais, mas esconde-se a matriz semântica.
– Tu, quando estás comigo és surrealista, até porque o papel é permeável a toda a chuva.
– Continuo sem gabardina para resistir à enxurrada, sabes? Até porque as etiquetas sempre me confundiram e a poesia é impermeável. Tu e o teu surrealismo ajudam a entender (me)?...
– Deixa lá, a pele é permeável a toda a chuva. Afinal, o que é o sangue sem a água, a água sem o sangue, o real sem o surreal?
– Às vezes pergunto-me sobre o que está mais próximo de nós: o real ou a sua caricatura – pomposamente etiquetada de surreal? Ei, passas-me o espelho? Não consigo respirar…
– Não encontro o interruptor. [Cegueira total].
– E a pele? A impermeável pele, terá desaprendido de tactear, de alumiar?...
– Deixa-a de molho. Quem sabe encontra os ossos que vestir. Olha, parti o espelho. Crás!
– Oh, e agora? Preciso do vidro. Sabes, é que eu temo a água e o seu reflexo; foi-me dito que derrete os olhos. Já não sei o que é pior: asfixiar ou deixar de ver…
– Destapa o frasco. Bebe o veneno.
[A cortina corre, a luz apaga-se, os aplausos escondem-se no interior das algibeiras. A humilhação é o granizo que lava, hoje, o palco].
[Laura Alberto & Jorge Pimenta]


– Queria oferecer-te o que não tenho – o lobo e o cordeiro cabem na mesma veia. Achas que o ar que nos falta é o segredo que os junta?
– Toma. Gostas?
É a panela mais silenciosa que encontrei.
– Deixa-me simplesmente fic-ar.
[E a nossa vida enche-se com tudo aquilo que não nos cabe].
[Laura Alberto & Jorge Pimenta]


mão morta, tiago capitão