terça-feira, 29 de junho de 2010

sobras

às vezes pergunto-me:
o que fica das pessoas?
(há rostos a quem perdemos o leito…)
o que sobeja dos livros?
(há páginas que asfixiam no peito…)

se a carne apodrece nos ossos
e os pássaros morrem nos versos
porquê esperar pela primavera do corpo?

Fotografia de José Figueira

sábado, 26 de junho de 2010

ofício




bebemos o sangue
no ofício de violinos
onde o pão e o vinho
são todo o livro
que balouça nas árvores do estio.

nas páginas rasas
chamámos deus às mãos
e inferno às águas
que incineraram as barcas
no derradeiro voo da mariposa.

nesta estação
o altar estremeceu
o culto emudeceu
e deus voltou-nos as costas
para se deitar a dormir.

por fim sós, nós, a voz.
mas, e agora?...

quarta-feira, 23 de junho de 2010

a du(r)as penas


a minha cabeça desprende-se
da espessura do corpo.
é tão-somente trono de madeira tosca
com os braços abandonados
à montanha emudecida,
como se já não vivesse na casa sem luz
ou se esquecesse da matéria corrupta.

a minha cabeça desentende-se
da estação do corpo.
é tão-somente outono de pedreira fosca
com os bagaços arvorados
à castanha endurecida,
como se já não vingasse na terra da cruz
ou se encontrasse de maneira abrupta.

na explosão da matéria
o jardim ergue a boca
para estrelas sem céu
em busca do beijo com os lábios da rosa.

na exposição da artéria
o carmim vergue a porta
para flores sem mel
em busca do rumo com os dentes da sobra.

(Cris de Souza & Jorge Pimenta)

domingo, 20 de junho de 2010

intermitência

todo o homem foi um dia
todo o mundo.

no corpo o mel e os jasmins
ordenados num compasso
traçando as linhas do instante.
a cabeça tocava o sol
o coração o eclipse
e todo ele foi nave de seda
e cidade transparente.

todo o mundo foi um dia
todo o homem.

sei que o peixe de fogo
ainda guarda o enigma da felicidade
no fundo do teu olhar
breu líquido
onde só o homem desassossegado sabe chegar.



Interpol, Pioneer to the Falls

refrão:
"And oh you try..
You tried.. straight into my heart
You fly.. straight into my heart
Girl, I know you try...
You fly.. straight into my heart
You fly.. straight into my heart
But here comes the fault (fall)."


quinta-feira, 17 de junho de 2010

errância

Fotografia de José Figueira

o malmequer errante
entrega-se às coisas máximas
na berma do peito.

pergunta-me se existe
o amor.

a resposta rasga as veias
e entranha-se no impulso do sangue
queimando-o da raiz até às pétalas,
como o sorriso nos lábios do medo.

nesse dia
não soube o que é o amor.
nesse dia
descobriu o que é morrer.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

dédalo

Minotauro no labirinto (mosaico romano, Conímbriga)

é cá dentro
que os nossos jardins
morrem como labirintos.
são ramos escondidos
água quebrada
e flores desligadas
assistindo à erupção vulcânica
enquanto os poemas nos anoitecem nas mãos
(nas nossas mãos).

toda a escrita espera um minotauro
e nem a raiz que respira dentro de nós
sustenta a tempestade de areia.

é vento. é frio. é noite. é a tábua cruzada.

e o álcool louco envenenando a língua
como brincos de cereja nas tuas orelhas.
e as palavras ébrias entumecendo na boca
como versos corcundas de não saber-dizer.

olha,
eu queria descobrir
em que parte do labirinto estendeste o cordel
para não ter de esperar
por outra vida inteira...

sexta-feira, 11 de junho de 2010

a casa

dentro,
suspende o seu movimento
privado da nudez
que embriagou o umbigo do medo.
está fria
devoluta
e até as metáforas
encardem na sujidade do passado.

fora,
pássaros de veludo
e cães embalsamados
afogam a ilusão
de um deus presente nos versos.

a meio caminho
tu e eu
perdidos no endereço e na chave
acabámos por envelhecer fora do tempo
(e este temporal que não cessa…).

terça-feira, 8 de junho de 2010

à espera do milagre

pela manhã,
o calor humedecia-nos a boca
com o leite de figos
enquanto ao redor
o campo e a cidade ardiam nas mãos.

à tarde,
enfiámos a cabeça na boca do leão,
como se as janelas
abrissem sempre para a foz do medo
(o insecto ainda foge do químico?).

à noite,
desprendemos a língua
e erguemos a nossa babel.
os lábios para sempre encostados
ao lusco-fusco da pedra anónima
algures entre o grito e o silêncio
de todos os beijos que não soubemos dar.

nem a noite chorou...

Fotografia de José Figueira [Feira de Avis]

domingo, 6 de junho de 2010

trapézio

Fotografia de José Figueira


o domingo de sol comprometido
(esqueço-me sempre que é dezembro
e os candeeiros asfixiaram no petróleo).
o concerto foi cancelado
(a amália morreu).
o benfica perdeu nos penaltis
(a roda gira às avessas).
o gato fugiu
(nunca esteve verdadeiramente comigo).
o leite azedou no frigorífico
(e eu que detesto chá).
a cal desprende-se das paredes
(a cor já há muito mudou).
os ossos rangem
o sorriso adoece
e os lábios mirram
(o sangue secou em todas as orlas).

então e eu?
estrebuchando
em equilíbrio táctil
nos braços molhados do teu telhado.

quinta-feira, 3 de junho de 2010

hora de ponta

10 horas da manhã. o sol faz levitar a paisagem bem acima da embriaguez nocturna, indiferente às fotografias desbotadas que escorrem pelas artérias do corpo. sorrisos de pedra para lá, esgares iracundos para cá, num alvoroço tépido que penetra os poros do 8.º andar daquele prédio velho que chora as memórias de um tempo sem ruína.
bom-dia! como está? estimei vê-lo! e logo os lábios se fecham na turbina tóxica da viagem que parece perder-se no próprio des[a]tino.
aqui, o rugido de um autocarro, ali, o vómito de um cacilheiro, aqui e ali máquinas em estrépito viril violando o silêncio nos tímpanos cansados de um coração arquejante como a rabeca daquele cego que durante anos não consegui ver.
meio-dia! o sol perdeu o mapa da viagem e os corpos tornam-se cada vez mais fotográficos (há-os digitais, em negativo e polaroid). são passos fazendo tiquetaque, braços agitando persianas, relógios em colapso cardíaco, lojas sem cães, armazéns, máquinas, automóveis, camiões, cortadores de relva, britadeiras, betoneiras, aviões a jacto, tudo a relembrar à eternidade que foi inventada para morrer, bem ali, no frémito cinzento, na voragem psicadélica, na vertigem magra da hora de ponta.
fim de tarde. na volta do sangue, o sol inclina-se sobre o mar, rejeitando assistir ao fluxo giratório de um mundo que não escolheu aquecer. é agora que os termómetros perdem a erecção e os relógios se afogam na afonia de pássaros devastados pelo relâmpago urbano. rostos? apenas um ou outro incapaz de entender como é possível reluzir no escuro.
a noite entrava no corpo. é a hora! as folhas que esquecemos no vulcão quotidiano agitam-se no bailado daquele gato listado pelas cores do amor falhado. o mundo esvaziou-se e a sua respiração suspendeu-se na fita magnética de um filme mudo, a preto e branco. à volta de um candeeiro, pirilampos cortejam a noite enquanto dançam ao som de talheres saltitando na banca ou de corpos em combustão na cama.
e no meio desta selva desflorestada, com cheiro a orvalho e a alfazema, as metáforas bocejam inaugurando o descanso no útero da insónia. já se esqueceram de que cor é o silêncio… já se desabituaram do paladar da quietude… já perderam o emblema da serenidade… no seu corpo estendido no escuro, vive o coração moribundo de uma cidade em permanente hora de ponta que queria saber morrer.



Fotografias de José Figueira