quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

elegia [ao ano velho]; ode [ao novo ano]

                                jean sebastien monzani, the exception

eis-nos chegados à derradeira fila.
365 passos e tantas cabeças a farejar
um céu feito de carne [como os cães vadios]
e o silêncio de estrelas [como os homens].
a meio caminho, anéis de tempestade
enrolam marés e praias
onde os rostos são gaivotas de ferro
que vomitam fumo sobre escarpas de pele
e fazem ninho nos sonhos da soberba agonia.

pela estrada
desci barragens e subi promontórios,
chovi mágoas e acendi fogueiras
deitei-me sobre a terra e corri à beira-mar
naveguei artérias e perdi corações
anoiteci ao meio-dia e enganei primaveras.
e, no final, o círculo do tempo
encosta o crepúsculo à aurora
como se o ontem e o amanhã se ligassem
pelo batom de lábios redondos
em permanente incêndio.

e agora?
é a hora.
recitemos a primeira luz do dia
na aparência do seu limite.

 
the smiths, please please please let me get what i want

a todos os meus amigos, que o novo ano ofereça a materialização plena do caminho a que morrissey aponta nesta imortal canção dos the smiths: please, please, please, let me get what i want.
um abraço!

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Noite de Consoada


                                            Ana Margarida

A mão fria da noite caíra já sobre a cidade. Não admira, é Dezembro e basta que soem as cinco badaladas na torre da igreja para os corações urbanos passarem a rufar alvoroçadamente. É que se a noite é grande, o dia mal chega para cumprir o ritual sem falhas. E há ainda tanto por fazer… a ceia, farta e trabalhosa, os brinquedos das crianças por comprar, a esmola aos pobres da caridade… ah, o bolo-rei, meu Deus, e o bolo-rei!?...
Sozinho, em casa, não posso perder a magia da noite branca que, presume-se, torna os seres humanos mais próximos da ideia original do Criador!
Levanto-me lentamente da modorra do sofá, enfio os braços nas mangas do sobretudo, ajeito o cachecol que comprei ali mesmo, nas barracas de rua, numa manhã tão fria quanto esta noite de consoada, e bato à porta da cidade. Recebem-me miríades de reflexos projectados obliquamente desenhando céus de luzes que escondem as estrelas; coros de crianças entoam cantares que todos um dia aprendemos junto à lareira, mas agora mais ritmados e amplificados por gargantas electrónicas que se espalham ao longo do presépio animado. Aqui e acolá, vultos apressados tropeçam em sacos coloridos de onde pendem, molemente, fitas e embrulhos fechados a correr, creio mesmo que sem ver… sem me ver…
Dentro de mim, a noite era silenciosa, escura e fria. Noite de Inverno, já se vê. Nem mesmo a companhia dos gatos que, como eu, vagueiam pelas artérias nuas, em busca de um sorriso esquecido, conseguem revelar o negativo fotográfico que, qual parasita, se alojara no meu coração. Do lado de fora, prossegue a sinfonia de talheres que estilhaçam os vidros e gargalhadas exuberantes que silenciam os gemidos da noite.
Aconchego o cachecol ao pescoço, subo a gola do sobretudo, deito o olhar ao chão e tomo o caminho de casa. A noite está quase a passar… Quando é o Natal?...

24 de Dezembro de 2008


A todos os amigos que se fazem próximos pelos blogues deixo um abraço com os dedos longos da neve quente que sempre se faz doce na lareira do coração.


Feliz Natal e até breve!


The Pogues & Kirsty Maccoll, Fairytale of New York

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

credo

                                 jean sebastien monzani

quem és tu?
trazes a boca perdida na insónia
e nem o tabaco e os dedos amarelos te sossegam.
perdeste os frutos do estio
[como foi possível anoitecer os risos brandos
em torno dos brincos de cereja?]
e com ele todo o verão.

não, não esqueço,
mesmo que apenas fantasmas de sangue.
não, não morrem
as imagens da terra fértil
em que o beijo era o pão
e o desejo o farol da loucura.

e mesmo que um dia adormeça sobre a cama de relva
que fotografa o passado
não deixarei de sonhar
com os arcos de pele contornando as estrelas
nesta falésia de perfume adormecido.

tudo o mais
é orvalho sobre uma folha indecisa
que o vento desprendeu da árvore.
por debaixo da ramagem continua a crepitar o fogo.


the cure, a thousand hours

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

etiquetas IX

                                            robert frank, new mexico, 1955
I. arbítrio
é a pulsação da terra
deitada sobre a pedra cinzenta
agitando a desilusão.
o amor assim se ganha e assim se perde:
na punção das cordas por atar
e no olhar de aves que perderam o voo.
que mais recear?


II. urgência
vou ligeiro
em pezinhos de céu
e por chão de estrelas

[não vão os derradeiros sonhos
esconder-se assim
não vás tu
escarnecer de mim]


III. adversativa
mas
que corrente de pedra
é essa que te navega o sangue
agitando as veias
em sístoles e diástoles
de hesitação feminina?


IV. os degraus da voz
cobre-me com o lençol de rosas
atira-me à terra que alumia.



jim morrison, a feast of friends

domingo, 12 de dezembro de 2010

Adiadas Dunas: Poesia à solta na Casa-Museu Nogueira da Silva

Decorreu ontem, na Casa-Museu Nogueira da Silva, em Braga, o lançamento do aguardado livro de poesia do poeta galego Francisco Mariño, pela mão da Editora Calidum.
Natural de A Corunha, Mariño é professor de Literatura Alemã na Universidade de Valladolid, mantendo uma produção na área a vários títulos notável. Adiadas Dunas é, todavia, a sua primeira incursão no domínio da produção poética.
Coube ao Mestre e amigo Henrique Barroso e a mim próprio a responsabilidade de, primeiro, e a duas mãos, escrever o prefácio para, ontem, apresentar a obra na cerimónia de lançamento.


Em Adiadas Dunas emergem um conjunto de seis partes, cada uma delas exercício de revisitação de lugares de primordialidade pessoal:
1. O lugar do reencontro com um tempo e um espaço que querem saltar as areias da ampulheta para se inscreverem, eles mesmos, no tempo e no espaço. Somos, assim, convidados a percorrer as galerias “do tempo esmorecido”, um lugar líquido, instável e refractário, onde as chuvas e as águas do mar escorrem de um passado suspenso na distância da irreversível memória – Chuvias Idas, Mares que Fuxem.
2. O lugar onde as águas do mar contornam os areais instáveis da alma, à esquina da razão, perdendo o sal na memória de um “tu” plural – Areal.
3. O lugar onde a noite, com braços frios e dedos longos, acolhe o coração no fogo-fátuo do desamparo – Noitebra.
4. O lugar da recuperação de um tempo de ausência e abandono emocionais que a memória persiste em não conjurar; é aí que as folhas outrora viçosas acabam por mirrar, definhar e adormecer, embaladas pelas mãos de Morfeu – De Wiemar.
5. O lugar do aceno demorado aos rostos que os anjos brancos ceifam e distendem num jardim onde o sol queima a saudade e a chuva rega as flores. É o tempo da homenagem àqueles que partem, mas, porque permanecem vivos na memória, jamais o fazem para longe – Arborado.
6. O lugar onde o eu poético procura libertar-se do lastro da memória e, com um brilho agitado no mar dos olhos, olha o presente e o futuro. O que não espera é que, num movimento cínico de Chronos, a linha do tempo se (con)funda, unindo, num suspiro, as mãos e o mapa sem geografia, onde tudo é apenas recordação… leve e frágil reminiscência – Envío.


Em síntese, Adiadas Dunas oferece-nos a demanda por um sentido inteiro do mundo desfraldado nas crinas das palavras, onde significante e referente, porque agarrados a um lastro comum – as emoções – possam convergir no seu sentido mais perfeito.

Restos

Quedamos nós
como sen luz e transgredidos
cheos de ollos e de voces
que xorden como maxias imposibles,
como o sangue coagulado
que se amorea, e espertamos
sen saber que fluíra algunha vez.
--------------------------------------
Unha palabra cínxenos á vida
e con nós busca o silencio.

[Francisco Mariño]

25 anos: Mão Morta no Theatro Circo

Não tinha sequer vinte anos quando assisti pela primeira vez a um concerto de Mão Morta, ao vivo. Recordo poucas coisas com nitidez e do flash difuso ocorrem-me imagens anónimas de um pavilhão em total desconcerto e caos.
Essa sempre foi, de resto, a imagem que Adolfo Luxúria Canibal passou. O retrato do ser fracturante, a roçar o anarquismo que, muito por força de uma personalidade com contornos definidos e de uma inteligência acima de média, surgia espontaneamente, sem qualquer tipo de artificialismo cultivado.
Hoje, com Adolfo já nos 50 anos, vê-lo a actuar é uma experiência totalmente diferente. O charme e o carisma estão lá, ainda que mais domados (até pela já proeminente barriga); os incitamentos rebeldes são velados e mais encenados do que genuínos; nas cadeiras, o cabedal negro cedeu lugar à miscigenação que caracteriza as tendências actuais, onde cetins se misturam com algodões de cores diversas. A música? ainda rock cru e duro, mas aqui e acolá pontuado por pormenores pop e até electrónicos. De inalterado, apenas as letras, onde os complexos humanos e as suas forças vitais (sexo e morte) determinam a linha maior (presentemente, muito marcadas pelas reflexões de J. G. Ballard).
O último álbum, “Pesadelo em Peluche”, tem sido aclamado pela crítica. Foi isso, para lá dos seus 25 anos de carreira, que fizeram regressar os Mão Morta ao palco da sua/minha cidade: o emblemático Theatro Circo. A noite escondeu-se por detrás da voz sussurrada do Canibal, durante quase duas inesquecíveis (nostálgicas, também) horas.


Mão Morta, Novelos de Paixão

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

tessitura de inverno


duyn huyn,  dreaming under the moth moon


não haverá uma só coisa
que cante em voz alta
nem uma só
em que acredite o olhar.

tanto perdi
que os bolsos vazios
são agora bússola e estrada.

cabe-lhes o tempo
e o seu rolo de argila sonora;
sobra-lhes o poema
onde só a decepção
inaugura as ramagens
de um inverno de nuvens claras.


david bowie, i'm deranged

sábado, 4 de dezembro de 2010

miríade

maria valentina

são mais de mil
as lâminas que espreitam
na varanda dos olhos.

debruço-me
sobre o horizonte breve do livro

[o poema nunca escolhe a mão:
deus, homem, poeta ou demónio?]

a única queda que aceito?
a água no seu leito.

são mais de mil
as flâmulas que espelham
na voragem dos olhos.

debulho-me
sobre o horizonte bardo do livro

[o poema nunca encolhe a mão:
ateu, bicho, poeta ou anjo?]

a única veda que aceito?
a alma no seu peito.

(Cris de Souza & Jorge Pimenta)




lhasa de sela, rising

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

helenismos

I. mediterrâneo
uma aranha borda o mar com patas de veludo azul.
entre a água e o abismo
o coração dos homens ensinando aos deuses
que a casa nunca é apenas a pedra que nos escreve.

nauplie [primeira capital da grécia]

II. pártenon
os deuses ergueram as colinas
na estrada que lava o sangue dos homens.
foi esse o dia em que a terra me segurou pelos braços
e inverteu os hemisférios.

acrópole

III. atenas
levantas o pó da estrada
e ofereces o coral líquido
[mesmo em insidioso equilíbrio
rezei].
athena não desceu do altar
mas desvendou o céu
e amparou o voo
[os pássaros também batem o pé
e aprendem a gritar].

e agora, convidas-me a ficar?

erecteion [perspectiva de uma cariátide]

IV ágora
no livro da ágora
há vulcões inflamados onde crescem morangos
e planícies que agitam a voz.
ah, se eu mandasse,
os deuses haveriam de ralhar
e a verdade despiria o anonimato.

os céus de corinto

V. afrodite
serás tu a palavra
que abre o rosto e alaga o corpo?
[pergunta o poeta]
serás tu a boca
que doura o mel no pólen do amor?
[suspira o amante].
o silêncio é a única resposta que os assombra.

erecteion

VI. regresso
que noite é esta
que depõe a despedida na tua mão?
acaso terei cantado alto de mais?

teatro de epidauro

VII. regresso II
somos apenas a saudade
e o seu derradeiro antídoto.

entre amigos



bouzouki

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

a porta dos violinos

o altar dos ventos (a acrópole ao fundo)

no sopé da colina, detalhe (a acrópole ao fundo)

o arco da poesia é incerto
não o nego
algures entre a flecha e os signos.
assim é a vida:
contamina a presença com a ausência
inaugurando o vazio verbal.

no novo tempo da página
caem deuses e templos
de uma antiguidade recente:
da ágora ao partenon
lábios de mel escorrem
sobre os beijos da memória
enquanto chronos cobre fendas
na nascente que se fez pedra.

a hora é frágil
sob a respiração da lua branca.
no altar dos ventos
ofereço o corpo ao olvido
[o absoluto sempre foi o bilhete
asfixiando na garrafa do náufrago].

talvez um dia receba a imagem inteira
de um olimpo-por-descobrir.

atenas, 23 de novembro de 2010




mediterrâneo, ost, 1992

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

etiquetas VIII

I. argila
Já não esperas o sul do corpo
ou as pérolas nos olhos dos pássaros.
[entre os uivos dos vivos e a serenidade dos mortos]
podes perder o instante
mas ainda há a eternidade.

praia da polvoeira

II. tiestes
o sol roeu-nos o corpo
lambeu-nos os ossos
e limpou-se ao tecido da pele.
ao castigo escapou a alma
que vive acima do homem
e não se deixa seduzir
pela nudez da tua voz.

são pedro de moel

III. máscara
corvos loucos
pintam os rostos e
despem os corpos
com pincéis negros na voz.
a arder-lhes no voo
a noite:
faz ninho sobre o meu peito.

jorge molder

IV. vertigem
alfabeto do corpo
mãos grávidas
ascensor dos deuses.

jorge molder



lhasa & stuart staples, that leaving feeling


sábado, 13 de novembro de 2010

deserção

àqueles que não desistem
àqueles que têm os olhos grandes
àqueles a quem nascem raízes nos pés
àqueles que conservam a verdade na voz.
[os outros? simplesmente não existem...]

jan saudek

as cidades de coral
descem sobre os homens.
enchem-lhes a boca
com palavras completas que mentem
na hora de nomear todas as coisas -
rostos sujos casas vazias
pratos quebrados telhas varridas
aço ferro e algodão

somos o reflexo
da árvore que enterrou a floresta
somos o espelho
do poema que perdeu a mão
e nessa grandeza de argila
um rosto
[um] só;
apoia-se sobre a lâmina que,
rasgando o solo,
é osso e estandarte
de um lugar que foi seu.

ousa despir as palavras
ameaça roubar os silêncios
e entra
seguro
na escuridão
que lhe anoitece o corpo
e o canto.

que mania a minha
de chegar sempre tarde
aos lugares onde não me esperam...


lhasa de sela, i'm going in

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

hemopalavras [ou a tranfusão verbal]

gregory colbert, tranquility

ei, poeta,
se as palavras “são como punhais”
e se as há “de vida e de morte”
por que insistes em golpear a garganta
com as lâminas de vidro?
ousa sangrar-lhes o veneno
antes de parires a poesia.

(referências iniciais a eugénio de andrade e a mário cesariny)




tindersticks, no more affairs

terça-feira, 9 de novembro de 2010

acorrentados - resultado

foram muitos os bloguers/amigos que aderiram ao repto lançado no dia 4 de novembro nesta rubrica "acorrentados". aqui está o resultado das diferentes páginas 34, linhas 8:

1. zélia guardiano

o que o interessava nos desenhos da criança era justamente aquele universo interior tão original que a criança projectava no papel.


2. domingos barroso
(de livro oculto)
apaguem as luzes, pois a noite é feroz...


3. andy

o que é pena é que neste areal da vida, onde cada um segue o seu caminho, não haja nem tolerância nem humildade para respeitar o norte que o vizinho escolheu.


4. ingrid
adoro meus dois pimpolhos como meus próprios filhos.


5. giomara gomes
na verdade a língua está se transformando atualmente com mais rapidez do que em qualquer outra época do renascimento.


6. vais

pois apesar de, ela tivera alegria. ele esperaria por ela, agora o sabia. até que ela aprendesse.


7. analuz
ia recorrer novamente à garrafa, mas viu que estava vazia.
- por que se há de ter pena de ti? - interrogou o taberneiro.


8. maria borges

seja como for, eu vou,
pois quase sempre acredito:
ando de olhos fechados
feito criança brincando de cega.
mais de uma vez saio ferida
ou quase afogada,
mas não desisto.


9. lara amaral
o fantasma de um operário que caíra da cúpula do capitólio durante a construção era visto vagando pelos corredores com uma caixa de ferramentas.


10. adriana karnal
(sem título)
partee points out that one of the strongest early motivations for events came from kamp and rohrer´s work on tense and aspect in discourse interpratation.


11. vanessa souza moraes
a varanda do apartamento mal podia ser chamada de varanda. só de a gente pisar nela, o corpo já quase encostava na grade de alumínio. melhor dizendo que era uma porta abrindo para o ar, com umas traves de alumínio para evitar que, por descuido, alguém despencasse lá de cima.


12. assis de freitas
- Continuo achando a coisa fantástica demais. e muito perigosa.


13. lívia azzi
sair do estabelecido e habitual, mesmo ruim, é sempre perturbador.


14. so sad

e os firmamentos - fogem-
diademas-decaem-dobram-se-os doges
gotas sem som-em um disco de neve.


15. ana f.

o amor não leva tanto tempo assim para se manifestar.


16. cida
...sei ter o pasmo essencial, que tem uma criança se, ao nascer, reparasse que nascera deveras...


17. cris de souza

alvo
adoro uma bobeira
uma palhaçada
uma palavra à margem
uma idéia engraçada
uma sacanagem
adoro a surpresa da piada
uma indecência boa
adoro ficar à toa fazendo trocadilhos
obscenos com sexo.
adoro o que não tem nexo
e por isso faz rir
adoro a bobagem pueril
a coisa que não tem rumo
que de repente me escolhe
e me olha.


18. laura alberto
pela casca não se conhece o fruto se lhe não tivermos metido o dente.

sábado, 6 de novembro de 2010

voracidades [por laura alberto & jorge pimenta]

zbigniew reszka

manifesto anti-figurões [e figurinhas]

há-os aos montes os figurões
[já ouviste falar dos figurinhas?]
colam-se na sola dos sapatos, mal-cheirosos
[não sabem andar descalços]
sobem pelas caleiras dos lares
espreitam nas janelas, das casas
[deitam-se no chão
à espera da respiração das rosas]
fervilham em caldeirões gastos
em sangue brando, fedendo.
[ah, druidas do fogo
já nem as rosas sabem que são rosas].

há-os aos montes os figurões
espeto-lhes o garfo, o tridente
deixá-los berrar na noite
[já ouviste falar dos figurinhas?
perderam a coluna vertebral
e passaram a viver em hortos sem luar]

felizmente a morte
escorre sempre pelo tecto.
[e aquece a terra
já com as flores desmentidas].

(laura alberto & jorge Pimenta)


david bowye, the heart's filthy lesson


três escarros

– olha aquele coração que ali vai.
– sabes, passei a odiar esses gajos, caretas previsíveis, sempre com bocejos nas palavras. uma vez tentei agarrar um deles, gritar-lhe para lhe suster o passo. o gajo olhou com desdém e prosseguiu. Não tem noção da grandeza e que só por ela se pode afastar os mortos. filho-da-puta!
– acorda, não estarás a sonhar? espera, não o digas já, acabaste de adormecer. não é o sonho que aparece, são só dentes podres que te sorriem. acorda.
– já acordei. e sabes porquê? porque quanto mais perto do sonho, mais longe da utopia. e eu que sempre acreditei na leveza que escorre da im.possibilidade…

– sou o teu despertador, não te esqueças de lhe dar corda.
– sou a tua corda. de que te serve teres os ponteiros se a máquina não funciona?

– ouvi dizer que há o silêncio, nesse teu cemitério de estátuas.
– o silêncio?... schiu.

(laura alberto & jorge pimenta)


einstürzende neubauten, sabrina

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

acorrentados


quem escreve, por norma, não prescinde da leitura.
acorrentados é uma rubrica que cheguei a alimentar no meu primeiro blogue, o circum-viagem (curiosamente por sugestão da minha querida amiga e poeta ana salomé), mas que, quase um ano volvido sobre estas viagens de matizes diversos, não reeditei. julgo ser oportuno fazê-lo agora, tanto mais que tenho andado a escrever sobre a falência das palavras e, metaforicamente, da poesia (a ironia maior é usar palavras e a própria poesia como arma de arremesso) e não quero ser interpretado como mercenário da própria alma :).
sem mais deambulações, lanço-me directo no assunto. acorrentados é a reedição de uma rubrica que propõe aos meus blogfriends que entrem numa espécie de corrente circular, onde cada um de nós partilha um detalhe da leitura que está a fazer, no momento, e de modo aleatório. desta vez, a ideia é publicar o que a leitura presente oferece na página 34, linha 8.
tenho andado a ler poesia (herberto hélder e garcia lorca), bem assim como o último romance de saramago, “a viagem do elefante”. eis o que oferece o livro na página e na linha mencionadas:

"a quem talvez não vejamos mais, ou talvez sim, porque a vida ri-se das previsões e põe palavras onde imaginamos silêncios, e súbitos regressos quando pensámos que não voltaríamos a encontrar-nos."
nota: para que a frase fizesse sentido, entrei nas linhas 7, 9 e 10.


convido todos os bloguers e amigos que por aqui vão passando a deixar o seu contributo sob a forma de comentário. recordo: página 34, linha 8 do livro que se encontram presentemente a ler.

a todos um abraço!

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

poema (l)ou cura?

jean michel basquiat, auto-retrato

do grande escrutinador
todos os nomes nascem mortos.
artes mágicas empurram a imperfeição
para o bailado dos versos
que contornam o sudário
desse deus que nunca soube a morada dos filhos.
no archote da poesia pôs a arder
vida beleza felicidade.
[até eu,
nos sonhos de poeta louco,
acendo maior lucidez…]

é por isso que,
já de olhos abertos,
escarneço do poema cego
e me lanço pela borda fora.

e não é que a eternidade
inscreve o seu nome na queda?


the national, conversation 16

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

tindersticks ao luar



a noite era de outubro; a banda, os tindersticks. não sei porquê, mas antes mesmo de comprar os bilhetes imaginei um ambiente outonal, com folhas de cores dissipadas a aveludar a voz sussurrada e rouca de barítono de um stuart staples prenunciando a melancolia que percorre esta estação do ano e as canções da inesquecível banda de nottingham. não me enganei. nem mesmo a temperatura amena e a claridade que emoldurava os céus do porto conseguiram iludir a sonoridade que sempre marca os acordes da banda, caracterizados, justamente, pela simplicidade triste e melancólica, potenciada por uma voz que segue a melhor tradição de trovadores que (en)cantaram uma geração, como é o caso de leonard cohen.
o palco foi um dos mais emblemáticos do país: o coliseu. casa cheia (o que não estranha, tal é a força dos tindersticks junto do público português que, desde 1993 – o ano da sua formação –, sempre lhes devotaram veneração); a heterogeneidade do público apenas a suspeita de que não há uma idade ou um tempo para se gostar de escutar boa música. no palco, exibe-se a parafrenália instrumental a que a banda recorre com o propósito de renovar o seu som, num exercício que, se dúvidas houvesse, reputa os seus elementos como músicos verdadeiros e não apenas rapazes que vendem canções.
nunca assistira a qualquer concerto dos tindersticks antes, mas confesso que figuravam no elenco daqueles que teria de garantir, mais cedo ou mais tarde. E a razão é apenas uma: vivi ao som de faixas como can we start again ou my oblivion, sempre bordadas pelo fino recorte da voz do seu imortal vocalista.
o espectáculo começou à hora marcada (ou não fosse a banda natural da old albion), sem grande aparato ou alarido. os sete músicos invadiram o palco e por ali permaneceram durante cerca de hora e meia, focando a sua atenção em temas do último álbum, falling down a mountain, mas não ignorando clássicos intemporais, como buried bones, here ou tiny tears, este já num muito aguardado encore.
a actuação foi sóbria, elegante, muito performativa e quase nada espectacular, bem secundada por uma variedade de efeitos de luz que, em momento algum, se revelaram ostensivos ou distractivos. e nem mais seria necessário, pois o intimismo da voz e das canções, a beleza das letras, bem assim como o ambiente encantatório que os tímidos movimentos de staples e sua banda esboçavam em palco, garantiam um quadro de delicadeza e ternura que embalou para momentos de desprendimento material. os mais desatentos, os menos conhecedores dos ritmos dos tindersticks ou os pápa-concertos desabridos podem alegar que a actuação chegou a roçar a frieza (os inevitáveis piropos pontuando o final de cada canção oscilavam entre o marvellous e o és uma salgadeira!). a verdade é que a beleza não tem de ser explicada: é, ou não é; sente-se, ou não se sente. tudo o mais é fait-divers; tudo o mais é acessório.
lá fora, já no carro, o concerto continuava, ainda com staples e os tindersticks. naquela noite amena de outono, o regresso fez-se depressa de mais…



tindersticks, buried bones



tindersticks, my oblivion

terça-feira, 26 de outubro de 2010

etiquetas VII

I. atlântico
escorre pelo baloiço
o hálito húmido do sexo
tantas vezes trespassado
pela gula do homem.


praia da polvoeira



II.eurus

de que serve ter
raízes seguras
e troncos viris
se toda tu
és tempestade?…

praia da polvoeira



III. teoria do caos
uma borboleta bate as asas
em torno do sorriso.
sede é a sua boca
e desejo as suas asas.
por que não a deixas pousar no poema?

cabo carvoeiro, peniche



IV. vigília
o sangue inteiro
não chega para lavar os ossos
que pregaste na epiderme do lençol
antes do voo,
algures entre o ópio e a insónia. farol de são pedro de moel



kings of convenience, gold in the air of summer