hoje acordei com nicotina nos lábios e a garrafa entornada ao lado da cama.
o espelho tem a face queimada pelas linhas brancas que embaciam o olhar.
Ah, inspiração, és o sexo do poeta guardado pelo trifauce da obscuridade. é verdade, procurei seduzi-lo, comprar o poema, vender-lhe o corpo – a sobrevivência da plêiade é aquela côdea de pão bolorento que serve de festim às moscas. mas a ambição do inferno é apenas um balde negro e vazio que nem a faísca do olhar prostituto consegue acender.
não soube encontrar o fogo dentro de casa, mas a pólvora persiste em bordejar as pontas dos dedos enquanto o corpo áspero é muito menos que lixa a aguardar pela fricção. não havia fogo cá em casa mas todo o homem é o seu poema, mesmo que inflamável.
malditas, malditas que escorrem negras pela face, as letras que fogem aos dedos entorpecidos, moribundos sobre o papel!
malditas, malditas que me roubam as horas dos dias, as horas das noites!
e a corda enrola-se no pescoço, aperta a pele, comprime os músculos e o sangue em golfadas, pelas veias, assassina as palavras sobre a areia imunda.
às escuras, adivinho a sentença. sei que preciso do meu castigo no intervalo do meu desejo, no interlúdio da minha peça, nas letras vazias do meu poema. mas a música deixou de me tocar e os deuses, do alto da sua torre, mijaram-me em cima.
importa não lavar a terra que trazemos agarrada aos olhos.
dark dark dark, wild goose chase
The National no Coliseu:
os tectos perfumados das palavras em acordes de violetas
À medida que passamos pela vida, vamos elaborando pequenas agendas mentais onde guardamos aquilo que temos de fazer antes de nos completarmos. Aquele livro adiado, a visita ao amigo cujo rasto se desviou da auto-estrada da vida, o país sonhado…
Do meu ainda pouco explorado rol de afazeres obrigatórios, há dois concertos: Os Interpol (planeados para Agosto) e, sem coincidências, este dos The National.
O palco foi o Coliseu do Porto, ontem mesmo, dia 23. Impossível não o adivinhar: duas horas antes do horário previsto, as ruelas de granito escuro desviam o olhar do tédio dos fins de tarde para se fixarem na atmosfera variegada de todos quantos, como eu, têm já bloco de notas existencial.
Conjugar o Porto com The National parece tarefa tão natural quanto óbvia. Como a cidade, esta banda norte-americana tem uma pele negra mas elegante, onde as paredes do exterior guardam, ciosamente, uma complexa rede de emoções que, como o do comum dos mortais, se cose com as linhas da melancolia, não dessa barata, que assina clichés em arrufos, ou castigos na boca dos piegas; falo da melancolia que desagrega redimindo.
São assim os The National: não se entregam a melodias imediatas, coloridas e adolescentes, capazes de, num estalar de dedos, oferecer os louros das charts para, no silêncio seguinte, os arremessarem contra o esquecimento; das letras, apenas a maturidade de quem procura conhecer o Homem, as suas frustrações e delírios, conhecendo-se a si mesmo. E é neste compromisso sério na relação com o público e, sobretudo, com a música, que a banda de Matt Berninger consolida o seu percurso, hoje, enquanto uma das bandas de maior identidade no mundo.
O Coliseu sabe-o e, por isso, encheu. Cerca de três mil e quinhentas pessoas lotaram-no para um concerto que se previa (eu previa!!!) intimista, noire, convidando à cadeira com leves meneares de cabeça e lentas projecções de perna. Puro engano. The National são um verdadeiro lobo com pele de cordeiro. O soturnismo e a melancolia dóceis também sabem incendiar as plateias com fogueiras de energia e carisma musical. Literalmente. E a razão é uma só: a natureza da sua música faz-nos viajar numa montanha-russa melódica, ora viajando nos acordes graves da voz de Matt (há ali tanto de Nick Cave!), apenas acompanhados de leves gemidos instrumentais, ora mergulhando na vertigem rítmica onde a delicadeza da voz se converte em clamor ferino. Escusado será dizer que bastaram não mais que duas músicas para que a plateia se erguesse e os mais afoitos se esgueirassem, por entre cadeiras, até à boca do palco, fazendo recordar os concertos ao ar livre nos festivais de Verão. E foram cerca de duas horas de saltos, de braços no ar e de gargantas unidas a reafirmarem que os bons concertos não têm forçosamente que seguir a receita standard, com milhares de pessoas, riffs de guitarra isolados ou mediatismo; os bons concertos também se fazem em lugares de culto, com um público restrito mas conhecedor, que sabe tirar partido daquilo que valoriza verdadeiramente.
No final, dois encores surpreendentes. No primeiro, se Mr. November fez explodir o coliseu, este anfiteatro ruiu quando, com Terrible Love, Matt Berninger se passeou junto do público, como se numa festa de amigos estivesse desde a primeira hora. No segundo encore, uma proposta diametralmente inversa: Vanderlyle crybaby geeks, unplugged, entoada numa garganta única por todos os Nationalists (termo sem conotações algumas para além da ligação à banda) ali presentes.
No final, as mãos desceram ao bolso para actualizarem a agenda. Surpresa: o concerto não surgia riscado, antes exibindo caracteres tão maiores quantas as emoções de mais uma noite inesquecível no Coliseu. Afinal, sempre há coisas que não se completam nunca. Quando é que eles regressam?
talvez regresse, um dia
na volta do cansaço.
basta-me guardar o tempo
entre as paredes da vida
e segurá-lo como à água
na cerâmica de uma ânfora grega.
talvez regresse, um dia
e abandone a aldeia e o largo e a casa
e todos os lugares que me couberam na mão
assim que parti
e esqueci os caminhos
entre o pomar e o mau tempo.
lembrar-me-ia de todos os cometas
dos candeeiros oxidados
do teu perfume de alfazema
e de algumas guitarras
que não fizeram escala nos apeadeiros da noite,
mas
cansei-me de fugir das palavras
e de esperar a boca que apodrece silêncios
como se o grito de luas de coral
fosse pecado inscrito no peito
e a voz a maior culpa dos que morrem.
talvez regresse, um dia.
mas
só quando a palavra queimar as promessas
só quando os lábios apaziguarem a mentira,
e eu apenas recordação vaga
de um revólver de cartão sem perfume.
Sobre mim, alguém um dia escreveu:
Jorge Manuel Rocha Pimenta.
Nasceu em Braga, cidade onde fez os seus estudos: Licenciatura em Ensino de Português-Inglês e Mestrado em Educação, Área de especialização em Supervisão Pedagógica em Ensino do Português, ambos pela Universidade do Minho. Tem repartido entre o Instituto de Educação e Psicologia (da UM) e a Escola EB 2,3 de Viatodos (em Barcelos) a sua vida profissional como docente, supervisor de estágios pedagógicos e investigador, tendo nesta qualidade publicado diversos estudos e comunicações.
Da paixão do ensino não só vive; também do teatro e de todas as expressões artísticas de que frui. Mas é à boca de cena que se encontra com a poesia, em diálogo íntimo, onde o papel que representa é o do homem que é fazendo o poema cumprir-se.
Obrigado, Ana Salomé!