terça-feira, 31 de maio de 2011

deslocamento orbital sobre graal em sangue seco

fotografia de antónio nunes

hoje acordei com nicotina nos lábios e a garrafa entornada ao lado da cama.
o espelho tem a face queimada pelas linhas brancas que embaciam o olhar.
Ah, inspiração, és o sexo do poeta guardado pelo trifauce da obscuridade. é verdade, procurei seduzi-lo, comprar o poema, vender-lhe o corpo – a sobrevivência da plêiade é aquela côdea de pão bolorento que serve de festim às moscas. mas a ambição do inferno é apenas um balde negro e vazio que nem a faísca do olhar prostituto consegue acender.
não soube encontrar o fogo dentro de casa, mas a pólvora persiste em bordejar as pontas dos dedos enquanto o corpo áspero é muito menos que lixa a aguardar pela fricção. não havia fogo cá em casa mas todo o homem é o seu poema, mesmo que inflamável.
malditas, malditas que escorrem negras pela face, as letras que fogem aos dedos entorpecidos, moribundos sobre o papel!
malditas, malditas que me roubam as horas dos dias, as horas das noites!
e a corda enrola-se no pescoço, aperta a pele, comprime os músculos e o sangue em golfadas, pelas veias, assassina as palavras sobre a areia imunda.
às escuras, adivinho a sentença. sei que preciso do meu castigo no intervalo do meu desejo, no interlúdio da minha peça, nas letras vazias do meu poema. mas a música deixou de me tocar e os deuses, do alto da sua torre, mijaram-me em cima.

laura alberto & jorge pimenta

david bowie, i’m deranged

quarta-feira, 25 de maio de 2011

orvalho em voo migratório sobre aves sem asas e geografia


                                    zambujeira do mar

com as tardes encaracoladas nos dedos
encontrei pontos negros na pele.
percebi, então,
que o homem já não precisa do corpo
a poesia despede o coração
as balas dançam com os amantes
e toda a sujidade é a roupa branca
a engalanar os lacraus peçonhentos
que sodomizam as cidades.

encolho os ombros,
dobro o jornal e levanto-me
com o mundo enrolado debaixo do braço.
sigo para a porta e já sei a verdade:
nas notícias dos homens,
implora-se a deus que não chova;
importa não lavar a terra que trazemos agarrada aos olhos.

dark dark dark, wild goose chase



The National no Coliseu:
os tectos perfumados das palavras em acordes de violetas




À medida que passamos pela vida, vamos elaborando pequenas agendas mentais onde guardamos aquilo que temos de fazer antes de nos completarmos. Aquele livro adiado, a visita ao amigo cujo rasto se desviou da auto-estrada da vida, o país sonhado…
Do meu ainda pouco explorado rol de afazeres obrigatórios, há dois concertos: Os Interpol (planeados para Agosto) e, sem coincidências, este dos The National.
O palco foi o Coliseu do Porto, ontem mesmo, dia 23. Impossível não o adivinhar: duas horas antes do horário previsto, as ruelas de granito escuro desviam o olhar do tédio dos fins de tarde para se fixarem na atmosfera variegada de todos quantos, como eu, têm já bloco de notas existencial.
Conjugar o Porto com The National parece tarefa tão natural quanto óbvia. Como a cidade, esta banda norte-americana tem uma pele negra mas elegante, onde as paredes do exterior guardam, ciosamente, uma complexa rede de emoções que, como o do comum dos mortais, se cose com as linhas da melancolia, não dessa barata, que assina clichés em arrufos, ou castigos na boca dos piegas; falo da melancolia que desagrega redimindo.
São assim os The National: não se entregam a melodias imediatas, coloridas e adolescentes, capazes de, num estalar de dedos, oferecer os louros das charts para, no silêncio seguinte, os arremessarem contra o esquecimento; das letras, apenas a maturidade de quem procura conhecer o Homem, as suas frustrações e delírios, conhecendo-se a si mesmo. E é neste compromisso sério na relação com o público e, sobretudo, com a música, que a banda de Matt Berninger consolida o seu percurso, hoje, enquanto uma das bandas de maior identidade no mundo.
O Coliseu sabe-o e, por isso, encheu. Cerca de três mil e quinhentas pessoas lotaram-no para um concerto que se previa (eu previa!!!) intimista, noire, convidando à cadeira com leves meneares de cabeça e lentas projecções de perna. Puro engano. The National são um verdadeiro lobo com pele de cordeiro. O soturnismo e a melancolia dóceis também sabem incendiar as plateias com fogueiras de energia e carisma musical. Literalmente. E a razão é uma só: a natureza da sua música faz-nos viajar numa montanha-russa melódica, ora viajando nos acordes graves da voz de Matt (há ali tanto de Nick Cave!), apenas acompanhados de leves gemidos instrumentais, ora mergulhando na vertigem rítmica onde a delicadeza da voz se converte em clamor ferino. Escusado será dizer que bastaram não mais que duas músicas para que a plateia se erguesse e os mais afoitos se esgueirassem, por entre cadeiras, até à boca do palco, fazendo recordar os concertos ao ar livre nos festivais de Verão. E foram cerca de duas horas de saltos, de braços no ar e de gargantas unidas a reafirmarem que os bons concertos não têm forçosamente que seguir a receita standard, com milhares de pessoas, riffs de guitarra isolados ou mediatismo; os bons concertos também se fazem em lugares de culto, com um público restrito mas conhecedor, que sabe tirar partido daquilo que valoriza verdadeiramente.
No final, dois encores surpreendentes. No primeiro, se Mr. November fez explodir o coliseu, este anfiteatro ruiu quando, com Terrible Love, Matt Berninger se passeou junto do público, como se numa festa de amigos estivesse desde a primeira hora. No segundo encore, uma proposta diametralmente inversa: Vanderlyle crybaby geeks, unplugged, entoada numa garganta única por todos os Nationalists (termo sem conotações algumas para além da ligação à banda) ali presentes.
No final, as mãos desceram ao bolso para actualizarem a agenda. Surpresa: o concerto não surgia riscado, antes exibindo caracteres tão maiores quantas as emoções de mais uma noite inesquecível no Coliseu. Afinal, sempre há coisas que não se completam nunca. Quando é que eles regressam?

the national, conversation 16

sexta-feira, 20 de maio de 2011

plano impermeável para escafandro de mergulho em seco


azenha do mar

talvez regresse, um dia
na volta do cansaço.
basta-me guardar o tempo
entre as paredes da vida
e segurá-lo como à água
na cerâmica de uma ânfora grega.

talvez regresse, um dia
e abandone a aldeia e o largo e a casa
e todos os lugares que me couberam na mão
assim que parti
e esqueci os caminhos
entre o pomar e o mau tempo.

lembrar-me-ia de todos os cometas
dos candeeiros oxidados
do teu perfume de alfazema
e de algumas guitarras
que não fizeram escala nos apeadeiros da noite,
mas
cansei-me de fugir das palavras
e de esperar a boca que apodrece silêncios
como se o grito de luas de coral
fosse pecado inscrito no peito
e a voz a maior culpa dos que morrem.

talvez regresse, um dia.
mas
só quando a palavra queimar as promessas
só quando os lábios apaziguarem a mentira,
e eu apenas recordação vaga
de um revólver de cartão sem perfume.


sigur rós, gong

quinta-feira, 12 de maio de 2011

ópera

floresta negra, tânia maria de souza


sentamo-nos no inverno do amor.

prometemo-nos anis 
mas acabamos por beber a água da ilusão   
como a bala que rasga  
de fora para dentro  
farejando os músculos 
que ensinam as coisas essenciais 
e os lugares onde os deuses adormecem. 

nenhum corpo aquece 
a tempestade dos ossos  
e os pés dobram-se na estrada 
lavada pela chuva dos sonhos.

em nosso redor, 
zumbidos inchados  
flores-de-lótus na candeia  
luz empedernida 
pondras sem água: 
eis a tela dos abismos 
numa floresta vazia de quartzo. 

sentamo-nos no interno do amor.

prometemo-nos cantis
mas acabamos por beber a água da incisão
como a veia que rasga
de dentro pra fora
forjando  os crepúsculos
que exprimem as coisas emocionais
e os lugares onde os deuses anoitecem.

nenhum  cloro aquece
a toxidade dos ossos
e as mãos deixam-se na estrada
levada pela luva dos sonhos.

em nosso redor,
zunidos infaustos
folhas de limo na caldeia
luz entorpecida
plantas sem água:
eis a terra dos abismos
numa floresta vasta de cactos.

[cris de souza & jorge pimenta]

nightwish, the phantom of the opera

sexta-feira, 6 de maio de 2011

notas de desamor em extravio simples para cordas de violino

                                          azenha do mar

o desamor desloca-se nas borboletas do tempo.
adivinho-lhe tremores cutâneos
e suores cansados
em bocas negras que envelhecem sós,
galanteio da memória
soçobro da amnésia.

nem os retratos sépia
nas palmas das mãos nodosas
aceleram a sua vida lenta,
tão-pouco as tardes amarelecidas
nas jarras do olhar
anunciam a flor.

o desamor lança-se na vertigem do vento.
abre a boca
[devagar
negra de ausências
branca como a morte]
e, já sem dentes,
balbucia palavras que desistem
algures entre a decepção do sopro
e o sonho do dizer
[há palavras que precisam do silêncio
para germinarem no peito].
olha para o lado
inclina o dorso
geme flores murchas;
sabes?
o tempo chora-o
e a rua abandona-o
e o corpo esquece-o.

o desamor senta-se nas entranhas do desalento.
a lágrima salva-o
na devoção de beijo gasoso
que se evapora em órbita invisível,
apenas adivinhada,
talvez pressentida
já não sentida.

na orquestra do coração
todos os violinos acabam por secar as suas cordas
e a música adormece para sempre.

mão morta, morgue