sexta-feira, 29 de junho de 2012

itinerário de papel para certezas transitórias


A cabeça foi deslocada para o presente. Temos os pensamentos actualizados com o momento em que estamos: nem à frente, nem atrás. Uma cabeça diária.

Gonçalo M. Tavares, Um Homem: Klaus Klump


fotografia de jorge pimenta


despi a maleita descosida
para reaprender a pele,
toda a pele,
mesmo que arranhada no arame farpado
daquele verão em que procurámos terra firme
mas acabamos naufragados no suco
dos frutos roídos até ao caroço – os frutos,
até ao coração – tu e eu.

hoje
ambos ausentes,
tu, no teu olhar com asas
de voo despovoado;
eu, contradição ofegante
a dissipar a névoa verde.

deste lado do vidro,
o sol quebrou-nos o corpo
e adormeceu aquele gato imóvel
que jurou ensinar-nos o nome das coisas sem idade.
do outro lado da vida,
o fim de tarde passa, lento,
como as gotas que o rio perde sempre para o mar.

Placebo, In the cold light of the morning

sexta-feira, 22 de junho de 2012

previsão meteorológica para gente, astros e descaminhos


Descem os primeiros passageiros. De ombros encurvados sob a chuva monótona, trazem sacos e maletas de mão, e têm o ar perdido de quem viveu a viagem como um sonho de imagens fluidas, entre mar e céu, o metrónomo da proa a subir e a descer, o balanço da vaga, o horizonte hipnótico.

José Saramago, O Ano da Morte de Ricardo Reis


fotografia de jorge pimenta


nenhum de nós sabe o cheiro da terra
ou quantas mortes baloiçam nos pingos de chuva
deste junho febril
a dizer versos avulsos
sem rima, rumo ou direção.
adormecemos no tempo que lava as cores
na respiração artificial da memória,
esse magnetismo de descaminhos.

do outro lado da morte
o eterno aroma-menino das palavras
um ou outro poema
e tantas caudas de cometa
a cair sobre os nossos telhados;
quisemos fugir dos estilhaços cósmicos
tentámos evitar a trajetória descendente
mas o tempo ensina a loucura
e suspende a gordura da pele,
que, já seca,
é apenas isco no anzol.

amanhã é julho,
e os dias serão escrita sem idade
ou mesmo morte fingida
dissemos.
tarde demais:
o julho aquece
mas nem toda a chuva adivinha a rota das nuvens:

caberá o coração na bola de papel de um calendário?


carter burwell, medieval waters [banda Sonora de em bruges, 2008]

sexta-feira, 15 de junho de 2012

ode a van gogh


Gostaria de ter sido um girassol. Um girassol hirto no seu caule, de longas folhas verdes desajeitadas e uma enorme corola doirada, seguindo cegamente o sol.
Estou só e a minha cabeça explode em milhões de girassóis.

Jorge Sousa Braga (Van Gogh por Van Gogh)


fotografia de jorge pimenta


arregaço os girassóis
com que aprendi a beijar
pé sobre pé
e componho a jarra no centro do peito.
sussurram-me que o amor é apenas conceito
de silêncio e ilusões
com que se raspa o corpo
como toda a flor de verso branco que
atirada à combustão do poema
ensanguenta a garganta prenhe de dizer
enquanto as candeias dos deuses
atam aos céus nuvens e balões.

mas sempre acreditei em girassóis
e em altares que acendem estrelas na carne:
só as pétalas embalam o lençol
porque se o amor é fórmula,
todo o ódio é medo
e das flores apenas conhece o plástico.

é tempo de pintar lábios grossos e revisitar van gogh:
o girassol junto à boca humedece a linha do fogo.

kate bush, wuthering heights

sexta-feira, 8 de junho de 2012

refúgio paradverbial de cidades, homens, sins e nãos


Inventarei outra escrita entre os muros
António Ramos Rosa


fotografia de jorge pimenta


as luzes extinguem-se por cima do nevoeiro e a voz
somente som desprendido da boca
encarcerado no espaço que é de tantos
mas que nenhum entende.
nos dedos, anéis sem cordas nem violinos
apenas nuvens
abafadas em gavetas
como mapas de tesouro que
já de costas
inventam o X sem léxico ou pontuação.

disseram-me que a palavra é sempre uma morada
mesmo que no anonimato de cidades
que nunca conheci
por serem mais rápidas
do que as decisões anavalhadas.
nunca quis saber
e ainda recordo o dia em que lhe pousei a mão no ombro,
distante da mão – ela
esquecido do corpo – eu,
enquanto do outro lado da rua
as luzes se apagaram
e a janela recolheu as flores
com medo do orvalho do meu silêncio.

hoje sei que as cidades e as palavras se escrevem à noite
com a máquina dos lábios,
bailado de saliva a escorrer na sílaba tónica
enquanto o poeta, analfabeto,
se afasta da luz
e dorme o que ainda não sonhou:

o esquecimento em monólogo.

placebo, blind