sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

fim de tarde

                                            valença do minho

subi a escadaria feminina do inferno
ampla, virgem, quase meiga
como aqueles pássaros que voam para o sul
sem deixarem rasto
sempre que a geografia reabre fronteiras.

em comum: o voo.
as asas colam-se nas mãos
e sigo mais rápido do que quero.
grito-lhes que parem
que tenho vertigens
que o fogo magoa,
mas a rota já elas a sabiam de cor
desde que os lábios giraram em círculos
sobre os lábios
e na saliva se inscreveu o teu nome.

passavam por mim as nuvens
e cidades crepusculares,
ficavam para trás noites claras
e abraços a arder em marés.
apenas o mar permanecia ali
imenso, intocado, inteiro
como a mãe que amamenta para lá da fome
e para cá do desejo de crescer.

cruzo-me com locomotivas sem braços
fornalhas sem carvão
próteses, tumores e doenças
que a subida acentua em tons de vermelho vivo.
calo-me
[há viagens que se fazem em silêncio]
fecho os olhos
[há viagens que não sabem ver]
e durmo,
como aquele gato
que depois do festim sexual
repousa nas pernas da avó,
enroscado nos novelos que cosem os dias
[as garras, recolhidas, já não raspam o pecado].

e os jornais desaparecem
e as televisões desligam-se
e o mundo corta os pulsos
vergado ao peso das lembranças;
apenas a viagem prossegue
cada vez mais nocturna
cada vez menos feminina
porque as viagens difíceis fazem-se solitariamente
sem horas
sem sexo
sem roncos metálicos
ou árvores verdes
[é que o céu é cada vez mais uma miragem].

subitamente
o derradeiro degrau.
lá fora?
fios partidos reconjuntam-se
na geometria da ordem
que dá o nome a todas as coisas.
do lado de dentro?
cai neve
branca, fria, severa.

entre o homem  e a sua imagem
apenas o corpo
aquele que aprenderá a respirar
pelos pulmões da neve e das luzes
sem vidros
com janelas tingidas de negro;
afinal
a memória tem olhos
e só sabe ver o que quer.
deixá-la falar pelos buracos das feridas:
neste fim de  tarde
o céu começa nas cicatrizes dos homens.
[quem o não sabe?]

morrissey, america is not the world

domingo, 20 de fevereiro de 2011

etiquetas XI

I. mudez
tenho uma certeza:
não morrerei de cancro
ataque cardíaco
ou de grandes amores.
morrerei de morte,
seca, sombria e sem aviso
como só ela deve ser.

é que há rostos que sobram
e doenças que apenas fazem sorrir.

                                            soajo [p. n. peneda-gerês]


II. livro em branco
hoje
não sei quem escreve o quê:
se o homem as palavras
se as palavras o homem.

                                praia de caminha


III. novela
a fruta-por-morder
e a fruta roída
são a mesma história
com protagonistas diferentes

[só não sei onde se esconde a larva].

                                torre de hércules [la coruña]


IV. frutos vermelhos
é inverno
e os frutos vermelhos
perdem o mapa
no trilho discreto dos corpos frios.
a árvore?
o coração como poema.
a raiz?
o amor como erro ortográfico.

ainda haverá fogo
no verão da tua pele?

                                            ligação entre o pinhal e a praia de caminha



john cale, style it takes

John Cale & Band - A Voz e o Tempo



Ontem dissiparam-se as dúvidas: há vozes que acabam por vir a morrer sem nunca terem envelhecido.
Quem entrasse no Centro Cultural Vila Flor, em Guimarães, ontem à noite, de olhos vendados, e assim escutasse as primeiras faixas do concerto, jamais diria estar perante a voz de um homem de 68 anos. Se, para desmistificar falácias, os abrisse, acabaria por confirmar as suspeitas iniciais: John Cale não é nenhum menino, mas a sua voz, limpa e cristalina, combinada com uma energia non-stop em palco, fazem dos seus concertos experiências musicais de finíssimo recorte.
Confesso que as minhas expectativas atingiram picos para este espectáculo. Não me refiro àquilo que a imprensa vinha anunciando há já vários meses (o jornal Público, por exemplo, considerava-o um dos dez mais aguardados do ano, em Portugal), mas antes ao peso expressivo que Cale tem no panorama musical dos séculos XX e XXI. 40 anos de carreira só podem significar uma coisa: por muito bom que se tenha sido num determinado momento da carreira, caso não exista renovação de fórmula, acaba-se por se morrer. Cale, à semelhança de Bowie, é um desses camaleões musicais que definem e ajudam a marcar musicalmente todas as décadas e um pouco de todos os estilos. Para isso é necessária uma forte formação musical (estudou piano e guitarra em colégios britânicos, na infância e na juventude), autonomia (apesar da sua ligação a monstros como Lou Reed e Andy Warhol, nos Velvet Underground, não enjeitou seguir o seu caminho assim que percebeu que as sensibilidades criativas dos membros daquela banda seguiam trilhos distintos) e muito talento musical. Cale tem-nos em doses ilimitadas. E, a confirmá-lo, o facto de percorrer, ao longo da sua carreira, a música alternativa, experimental, punk, rock alternativo, pop e, mais recentemente, electrónico.
Em palco, este galês não fica a dever nada aos mais novos, pois, apesar da reduzida interacção verbal com o público (foca-se claramente naquilo que tem delineado para que nada falhe), as suas performances são eléctricas, abrasivas e muitíssimo competentes.
Revisitar 40 anos não é tarefa simples, e por mais criterioso que se seja, em 90 minutos há sempre esta ou aquela canção que nos toca de modo mais particular que acaba perdida nas pistas do vinil, acabando por não subir ao palco. Ciente disso, Cale optou por percorrer um pouco de todo o seu mapa musical, começando com títulos mais recentes, e de expressão electrónica, passando, depois, para o rock puro e duro, para o rock mais alternativo e, por fim, para as sonoridades mais calmas de algumas das suas baladas. A fechar, um encore breve, com apenas uma faixa, desta vez em acústico – e que a todos deixou com água na boca por ter sabido a pouco. Apesar de tudo, compreensível: são seis concertos em Portugal em apenas nove dias. E aquela voz tem de ser bem tratada. É que daqui a outros dez anos quero revê-lo aqui ou em qualquer outra parte do mundo.


HEY GEORGE, ROCK ON!
obviously, mr. cale [hehehe]

 
John Cale, Dying on the Vine

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

fevereiros

                                   jorge pimenta [espigueiros do soajo - p.n. peneda-gerês]

não deixes que este fevereiro
faça morada em ti.
para que queres o vento
se levanta a pele,
para que procuras o frio
se rebenta os músculos 
ou a chuva
se lava os ossos?
[há tantos náufragos
sem madeira ou braços
com que gritar].

és apenas um banco de jardim,
onde o gelo trespassa a sola dos sapatos.
é frio, frio que te vem cortar os dedos
turvar o olhar, cerrar os lábios.
apertas a gola do casaco,
enquanto rolos de ar se libertam da boca
semiaberta.
ao teu lado, um velho tronco de árvore
adormecido,
gasto por histórias escritas
nas tempestades de inverno.
[ah, que inferno].

não,
não deixes que este fevereiro
renasça contigo,
se faça monstro dentro de ti,
te morda o pescoço
e te roube a as cidades transparentes
que avistas por detrás da retina.

sabes caminhar mas não há caminho
a lama cobriu o que o tempo esqueceu,
queres ir mas não sabes onde
não vislumbras a pedra com que te cobrir.
é:
os meses são como a roupa da cama:
assobiam rebanhos nocturnos
e no desejo de adormecer camélias
empurram o lençol para o rosto
lambem o sonho
acariciam o desejo
enquanto estendem a mão para a boca
brincam às escondidas na solidão da noite
[não o sabias?]
e não consigo respirar
e falta-me o ar
e procuro os utensílios, desinfectados
e esqueci o frasco de cristal
e bebi do veneno
e não sei do antídoto
e estrebucho em silêncio
e arranho o sangue com pele
e vomito as entranhas que não me pertencem
e as que pertencem
e já não sou eu que choro.

e, ao meu lado,
há sempre alguém que morre primeiro.

laura alberto & jorge pimenta

clint mansell, requiem for a dream

domingo, 13 de fevereiro de 2011

alguns dedos da mão

                                  daren borzynski

amanhã vou bater-te à porta.
sei que perdeste os ouvidos
e que a campainha não toca,
mas vou lá, ainda assim.

uma a uma, recolhi as pistas
que espalhaste pelo meu corpo
e ainda que em anacronismo
consigo entrar.
[a propósito, o sangue seca mais depressa
em fevereiro
e as cicatrizes são apenas flores
que fazem jardim na pele.
soubeste-o antes de mim, verdade?].

vejo que não perdeste
os olhos
onde fiz a minha biblioteca
e os lábios
que tornam todas as águas lentas.
mas sei que já tens pouco para dar,
e eu com tanto a estourar
na mão que dá
na mão que recebe
[finalmente entendi em que balança
se pesa o amor].

depois de ti
sei que os beijos podem não abrir versos
que os lençóis são apenas a cama onde te deitas
ou que a terra mais feia do mundo pode ser mesmo isso:
a terra mais feia do mundo

depois de ti
comecei a apertar as veias
e a tentar iluminar a garganta
[maldita boca,
o fogo que outrora a seduziu
queima agora as entranhas
e nem os dentes cabem, já, no sorriso]

depois de ti
o próximo poema
será feio como eu
será sujo como eu
será indecente como eu,
uma imitação
como eu.

mas sei que
mesmo borrado de tinta
jamais o saberás ler
sem alguns dedos da minha mão.

ulver, eos

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

gumes

fotografia de pedro polónio,
http://club-silencio.blogspot.com

vou fingir que não te ouço
para não ter mais os pés frios.
quiseste tudo,
até as varandas da morte
por achares que uma só vida
[esta]
te não chegava.

deitei o corpo em telas brancas
onde pintavas estranhas paisagens,
esperei ao relento
que os teus olhos se abrissem,
rocei ervas daninhas
jurando que bebia as tuas mãos.

tive frio, fome, calor, sede
gritei ao silêncio
[não sou eu]

afiei as lâminas, desinfectei os punhais
rasguei as entranhas
e esperei que o sangue
[não o meu]
corresse

não guardei os lençóis,
não consegui adormecer a tua escova-de-dentes
e não estourei com os teus discos de vinil.
nem os livros que escondi
no teu ventre se fizeram biblioteca,
quanto mais os rabiscos
que ousei arrancar-me enquanto a carpete
já só exibia o pó dos teus pés.

parti os vidros, os espelhos, os cristais
bebi do suor da testa,
esqueci o sal da tua boca
e lavei os dentes até que os pulsos se partissem

depois?
desci as calças
e emprenhei a vergonha
[que nunca reparti contigo]:
comprei romagens,
assinei promessas
e assisti às missas
[mesmo não sendo domingo].
já só me falta beijar o demónio na boca
[nem ele suportaria o hálito do meu corpo].

laura alberto & jorge pimenta


interpol, hands away

sábado, 5 de fevereiro de 2011

ode de toda a urgência

                                          berenika

conto em
mim
alfabetos de urgência.

são palavras que se agitam
em ancas húmidas
que navegas,
nua,
como rotas de espuma e de prazer.

e o  futuro recua enquanto te
conduzo
no verso na rima no poema:
saboreamos abismos
que não sabem repartir sombras
nem o medo à prova de céu.

e a tinta avança e logo te
guio
na estrada no norte no verão:
cavalgamos os lábios
que ousam iludir a respiração
e o sol das outras ruas.

o destino?
a porta-sem-morada.
o desatino?
o porto por-decifrar.

ai,
e o tempo
que nunca sabe esperar?


A minha amiga-de-tantos-encantos recebeu um selo da nacasadaná e, depois de ter cumprido o preceituado nas regras para a sua atribuição, teve a gentileza de me incluir no conjunto dos 15 blogues-amigos a quem o repassar. Agradeço-lhe a gentileza e aqui replico ao desafio.

Regra 1: nomear 15 blogues.
Na impossibilidade de me decidir [é impossível; como decidirmo-nos, de entre as veias do corpo, sobre aquela de que o sangue gosta mais???], deixo-o aqui para todos aqueles que me visitam e que eu próprio procuro nestas longas viagens pelas marés da poesia. Um abraço a todos esses, meus amigos; sintam-no como vosso, por favor.

Regra 2: responder a um conjunto de perguntas.
Nome: Jorge.
Música: Cathy, de Rodrigo Leão e Neil Hannon [aqui a acompanhar o post].
Cor: Preto.
Estação do ano: Outono.
Como viajar? Acompanhado, sem ter o plano de viagem inteiramente esgotado na definição das suas linhas prévias [sempre à espera de que a viagem me surpreenda].
Frase ou palavra que mais usa: “nada te pertence; tudo é de tudo o que passa”, Jordi Virallonga [frase]; homem [palavra].

rodrigo leão [com neil hannon], cathy
 
 
Um miminho da querida amiga colecionadora de silêncios, do blogue hiperestesia.
Um abraço com um agradecimento especial a quem connosco partilha este espaço plural de sensibilidade e bom gosto.
 
 

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

lugares

fotografia de pedro polónio,
http://club-silencio.blogspot.com

trago-te sempre às costas
e como eu gosto dos teus dedos.
suspiro quando percorrem a minha coluna,
brincam violentamente com a espinha
nos lugares onde as metáforas fazem ninho.

as costas são o litoral do corpo.
estendem ímanes sobre as mãos
e todos os frutos silvestres por roer
mesmo se nenhum de nós sabe o jogo
onde se lançam dados viciados,
mesmo se nenhum de nós sabe o fogo
onde navegam deuses alados.

e eu quero perder-me
aí, onde os mapas se rasgam ao vento
e a areia molda os nossos corpos
[e quero que passes, quero que fiques].
e eu quero perder-me
aí, na tempestade das pernas
e na orla dos joelhos que ardem
[e quero fugir, quero ficar].

se mergulhar um dia
sei que não vou ficar, aí
[as horas lentas
escorrem pelas paredes
mancham os lençóis].

se cair um dia
sei que não voltarás, aqui
[o pássaro será de papel
girando em órbitas de giz
atadas às linhas da tua mão].

e esse espaço que o teu corpo ocupa
jamais será meu.

laura alberto & jorge pimenta


the legendary tiger man, life aint enough for you