quinta-feira, 8 de abril de 2010

morada

a casa está abandonada. deixaram lá tudo: o soalho, as telhas, a cal, as portas, os móveis, os copos, a roupa... até o aroma dos corpos e as cerejas maduras resistem à poeira do tempo.
deixaram lá tudo... preciso mudar - ouviamos; faz falta recomeçar - acreditávamos; já pensaste que tens de renascer? - perguntavam-nos. as vozes que escutamos mas não reconhecemos têm sempre a força de um verão adiado e acabam sendo as mais respeitadas pelos ouvidos cansados de palavras disparadas por revóveres escondidos nas nuvens, como se a exactidão anatómica do dedo que prime o gatilho morasse no interior escuro da tua boca - por isso acabámos por aquiescer; as vozes que não têm dono escrevem-se com sangue nas curvas do ar - por isso acabámos por esquecer)
a casa permanece abandonada. deixaram lá tudo.
agora, o tempo é mais lento e o olhar turva-se no abismo da memória (sabias que a solidão tem a mesma natureza dos cravos que florescem na pele? apenas sabemos que existem porque nos olham descaradamente como se o único inquilino autorizado do corpo fosse eles... mesmo que os não queira, mesmo que os despreze, mesmo que os castigue com silêncios azuis que se erguem acima dos telhados, confundindo-se com o céu da saudade... como fazê-los entender?)
a casa continua abandonada, deixaram lá tudo.
já escureceu? (houve noites em que sonhei com submarinos escatológicos a aguardar que a maré me levasse para longe... em vão)
já amanheceu? (houve manhãs em que sonhei com a tua boca a queimar o asfalto por onde seguir... inutilmente)
anoiteceu ou amanheceu? sei lá!... mas, se foi algures entre a noite e a alvorada que perdi o itinerário do teu nome, que faço eu aqui?...

13 comentários:

  1. O que mora em nós, quem nos habita, onde é esta morada? Imóveis, tantas vezes, como casas abandonadas, nos largamos, inertes, mercê do que se foi. Não somos, mas restamos impotentes em todo abandono. Metafórico ou não, restará sempre uma casa vazia.
    forte abraço

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  2. Recordo o refrão de uma música dos U2 soberba em que Bono clama que "a house is not a home". Nada mais certo, verdade, Mai?
    Um abraço!

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  3. ...que faço eu aqui?
    .......uma interrogação em que me baloiço enquanto a resposta não vem...

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  4. Tendo a baloiçar mais sobre a pergunta do que sobre qualquer possível resposta, Em@...

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  5. tudo nos habitará para sempre... a nossa morada será aquela onde saberemos viver com tudo o que vivemos.

    Bjinho!

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  6. de deixar ir... será que no meio de tudo isso há algum grito? um grito diferente com mãos?

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  7. Harmonizando a linha do tempo com o chão que pisamos, verdade, Andy?
    Obrigado pelo gito, NãoSouEuéaOutra!
    Um beijinho a ambas!

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  8. se pergunto é porque encontrei/vi o(s) problema(s).
    pergunta muda, só do olhar, grito afogado, aflorado ou mesmo liberto.gesto de mão ou de cabeça quase imperceptível. mas senti, percebi o que me incomodava.
    as respostas é que...
    mas é de mim que falo, num paralelo ao que dizes.
    .
    desculpa.

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  9. Ainda assim, sabes que sempre temi mais as perguntas que as respostas, Em@? As respostas, quando existem, são um touro selvagem que, com maior ou menor custo, pode ser domado (e o intervalo é a linha que vai da resolução pura à resignação incapaz); já as perguntas nem sempre apontam caminhos...
    Beijinho e obrigado pela partilha!

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  10. Esse interrogar-se contínuo, e as respostas vão se ao vento, como naquela canção de Dylan - blow in the wind. abraço

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  11. But "you don´t need a wheatherman to know wich way the wind blows".
    Deixa-o soprar amigo, deixa-o soprar!
    Beijo
    Laura

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  12. em prosa ou em verso, esse blog é uma eterna delícia.

    gosto de estar aqui, poeta de Braga.

    abração do seu amigo das minas gerais,
    o roberto.

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  13. Obrigado, Amigo Roberto!
    A tua presença é por mim sempre notada com um carinho especial!
    Um abraço!

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