sábado, 6 de março de 2010

Cárie

Esta noite desci ao inferno.
Deixaste-me sobre o peito o mapa desenhado a compasso e transferidor (conheces-me... sabes bem que a orientação nunca foi o meu forte...). Sabes que estranhei a tua mão? Sempre tão solta, livre (e só por isso conseguiste habitar-me a boca até ao dia em que o hálito apodreceu juntamente com a cárie onde escondia o que te não devia mostrar)... E agora? Firme, segura, geométrica, como a auto-estrada que liga corações de pedra aos campos do (im)possível.
Alguém tem um cigarro?
Não apanhei um táxi nem fui de avião. Prefiro esgotar os músculos na brisa que deixará de correr naquele vale onde talvez te venha a encontrar (afinal, tenho tempo para arder).
Obrigado! Tem lume?
Ladeando o asfalto, figuras recortam o horizonte; seguem curvas, lentas, moribundas... os seus rostos mais jovens que o meu, mas o olhar é o de alguém que um dia soube fazer a vindima do sangue do corpo; e a íris? Verde, o verde de uma árvore que cresce sobre as folhas como se o canto da cotovia que nela espreita anunciasse o fim da história.
Que frio... Não consigo parar de tiritar... Segura-me as mãos?...
O portão de aço estende-se diante de mim. Está aberto e os beijos de fogo que consomem os gritos comprimem-me os lábios, fazendo-me esquecer de como se faz para sorrir.
Meu Deus, que frio... Aquece-me as mãos?
Encimando os lancetes, a placa "almas cariadas" (desaprendi de escrever - ensinaste-me que o essencial não se escreve com tinta, mas com lágrimas, por que haveria de ainda o saber? -, mas ainda consigo ler).
Antes de entrar, grito com chama nos pulmões e gelo na voz dêem-me um complexo, arranje-se um sentimento de culpa, procurem um trauma ou uma frustração... e um devaneio, já não há?... (ufa, como me sinto melhor).
Estico as pernas da camisa, sacudo as tuas migalhas de pele e sopro dois cabelos longos que teimam em resistir no alto do ombro esquerdo. Levanto a cabeça e rio. Raios, não há ninguém que me arranje outro cigarro? Vou enganar o pobre diabo: como se faz para morrer se as balas são sempre flores numa primavera sem idade?

7 comentários:

  1. Fizeste-me transportar ao universo de Byron e daqui de um poeta brasileiro chamado Augusto dos Anjos: "eu filho do carbono e do amoníaco". Almas cariadas eis o mote contínuo. Abraço.

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  2. poeta, responda-me :
    - como se faz para morrer se as balas são sempre flores numa primavera sem idade?

    belíssimo.

    abração do
    R.

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  3. saber morrer-me para não me viver em "alma cariada"...
    Um abraço, Assis e Roberto!

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  4. faz-me lembrar o frio que por vezes circunda o corpo e os caminhos da alma contrastando com a eloquência das palavras...
    esmagadoramente lindo!

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  5. Fiquei dilacerada, antes.
    Agora apanho os pedaços.
    E consigo!

    Abraço!
    Laura Alberto

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  6. "Como a auto-estrada que liga corações de pedra aos campos do (im)possível..."

    Esse texto deveria ser publicado em qualquer Mural,placa,livro,capa de revista,quadro de colégio, porque esta página é deveras pequena para tal profundidade... E limitá-lo ao espaço deste "quadrado" é um "crime" virtual! :-)

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