quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

viagem

Brugges, 15 de Fevereiro de 2010

visto o sorriso que tranco por dentro com a chave de areia que tantas vezes perco no bolso dos jeans rasgados – há sempre um bem guardado para as melhores ocasiões (embora nem sempre saiba distinguir aquelas que o merecem…)
ao ombro, a mochila carregada de mapas e guias de lugares que existem, apenas, em imagens de um mar, cansado de navegar, que se entrega à costa para sofrer os castigos por já não saber beijar. os músculos flácidos amolecem-lhe os ossos, outrora viris, os mesmos que souberam murmurar ao vento o nome dos escolhidos para as rotas da sublimação (desisto de procurar… virei e revirei os arquivos da tua vida e o meu nome teima em não aparecer…)
nos pés, aquelas botas que sulcaram terrenos férteis debruçados sobre infinitos de horizonte breve (o teu sorriso bordado com a linha da verdade permanecia suspenso entre o desejo e a impossibilidade – afinal a marioneta de destinos incumpridos eras também tu, não apenas eu…)
os passos saem débeis, na titubiância de remos oblíquos que dispensaram o capitão. creio firmemente que não se salvou daquela tempestade de estrelas que caiu sobre a nave da loucura naquele dia em que se auto-proclamou neptuno… vi-o estendido no chão, sobre a alcatifa azul onde naufragara sem aplauso, sem glória
depois da porta, uma melodia desprende-se de dois candeeiros celibatários expulsos do paraíso por se recusarem a acender os diademas de falsos reis, aqueles que deixaram inclinar a noite sobre o rosto por crerem que o mundo cabia, inteiro, nas suas mãos entumecidas pela soberba
sento-me com o olhar perdido num tempo em que também eu sabia cantar, em que também eu podia brilhar, por mais baça que a noite mergulhasse sobre espelhos de água corrente
sento-me com os poros vertendo a água que escorre dos olhos à boca, como um murmúrio de nascente que deixasse de saber para onde correr
sento-me com as mãos sobre a cabeça numa orgia rutilante que rasga, em cutiladas vigorosas, a frescura do silêncio
sento-me e percebo que ficaste para trás
e é no lugar que deixas molhado que cabe todo o tempo




Mafalda Veiga, Cada Lugar Teu

6 comentários:

  1. Que texto maravilhoso amigo Jorge! Creio que tu poderias a partir dele escrever uma "longa história"... :-)

    Estou fora de SP em viagem a trabalho por 04 dias, passei um pouquinho por aqui para ler-te, confesso, revigorei-me!

    muitos beijos...


    "Visto o sorriso que tranco por dentro com a chave de areia que tantas vezes perco no bolso dos jeans rasgados – há sempre um bem guardado para as melhores ocasiões..."

    ResponderEliminar
  2. Amigo, um dia também escrevi sobre umas calças ragadas e um corte de cabelo, mas nunca com a veia que tu pões e nos deixas aqui!
    Beijos

    ResponderEliminar
  3. Com as malas da existência o cumprir-se tempo e memória em rasgos. abraço.

    ResponderEliminar
  4. Caro Jorge, já vi a tua mensagem no meu blogue. Pois como reparaste, aventurei-me na edição de um livro, mas nada de ilusões. Foi um mero exercício de escrita, sem quaisquer pretensões. Ainda tenho muito a amadurecer nesse sentido... Tu, pelo contrário, já forneces aqui no teu blogue uma breve amostra de que tens tudo para te lançares à vontade no mercado... Ou já tens algo publicado? Um abraço literário :)

    ResponderEliminar
  5. esse espaço é uma preciosidade, cada coisa que escreves de uma qualidade sublime. Depois volto para ler mais.

    Beijo

    ResponderEliminar