sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Jorge Sousa Braga - O Poeta Nu


O meu percurso como leitor torna-me, hoje, um ser mais selectivo tanto nas compras de livros como nas leituras que faço. Não, não se trata de um sinal de desprezo pelo muito e bom que hoje se publica e muito menos será um qualquer tique de sobranceria intelectual; é apenas o reconhecimento da finitude do ser humano que, no seu trajecto existencial, tem de pragmaticamente fazer escolhas, sob pena de passar ao lado daquilo que, de acordo com os seus padrões, se torne imprescindível conhecer antes de morrer.
Ainda assim, há um género literário que compro e leio compulsivamente, tantas vezes sem mesmo conhecer autores e textos: poesia. E porquê? Porque a sinto como a verdadeira expressão (ainda que metafórica) dos diferentes recantos existenciais do eu.
Foi justamente por isso que tropecei (e o verbo não é acidental) na poesia de Jorge Sousa Braga. Já lá vão uns anos, deixava eu correr a mão, um pouco sem critério, pelas florestas de autores de uma velha livraria no Porto, quando me detive num título que me interessara: O Poeta Nu. Desconhecia em absoluto, mas confesso que não foi sem alguma expectativa que comecei, ainda de pé, a deixar que alguns dos textos me entrassem pelos olhos; a pouco e pouco, acenderam pupilas, acabando por se alojar, com sorrisos, sob a pele (alguns versos ainda lá moram, numa varanda bem por cima da memória: Nem todos os frutos vermelhos/ merecem o céu/ da tua boca).
E, se estas leituras desgarradas podem ser perigosas, porque dissimuladoras da noção de conjunto, a verdade é que a escrita de Sousa Braga cedo sugere um sentido muito pessoal de tratar a palavra poética, que garante a uni(ci)dade mesmo numa leitura oblíqua: ora aponta para a dispersão, ora clama pela redenção. As pequenas epifanias foram-se sucedendo ali mesmo, de pé, poema após poema, ao ponto de ter deixado passar o tempo por mim – e como me deu gozo rir nos olhos do tempo, humilhado, vexado e, sobretudo, mal habituado à altivez humana, apenas possível quando junto das pequenas coisas (de que é exemplo a grande poesia).
Passaram-se anos sem voltar a ler o médico-poeta de 53 anos, natural de Vila Verde. E foi num novo acesso de discricionariedade que o livro me voltou às mãos: um amigo que tinha recomendado a um amigo que, por sua vez, o comprara para um amigo, num carrossel que traria Jorge Sousa Braga de volta à minha secretária.
Não sou daqueles que acreditam que não devemos voltar aos lugares aonde fomos felizes. Creio, firmemente, que os retornos indiciam sempre novas partidas e que é no recomeço de um lugar que em tempos foi nosso que o tornamos ainda mais nosso, porque se renova e reafirma. Assim sucedeu com a segunda leitura de O Poeta Nu, desta feita já não de pé, encostado à estante da livraria, a deixar o corpo a protestar contra o desmazelo com que por vezes é tratado… E, se a magia desflorara daquela poesia uns anos antes, desta vez (citando Emily Dickinson acerca da poesia), ela fez o meu corpo inteiro tão frio que nenhum fogo pôde aquecer-me […] como se o topo da minha cabeça tivesse sido arrancado.
Sem a pretensão de qualquer análise de teor literário (nestas coisas de leitura, em geral, e de leitura de poesia, em particular, mais que esquemas interpretativos fechados, deve contar as emoções e sensações que nos atravessam quando percorremos os textos), referia que a escrita de Sousa Braga é, sobretudo, dispersão e redenção. E a escolha deste par lexical é intencional, pois, em O Poeta Nu, convergem os contrários num todo que se harmoniza de forma tão perfeita que bastará, para o assegurarmos, deixarmos que também o nosso olhar se desnude. Falamos de uma poiesis que conjuga ironia e gravidade; crueza e delicadeza; violência e serenidade; amor sensual (por vezes extremo) e amor intangível, em qualquer dos casos sempre cruzado por um traço surrealista incontornável. Assim se compreende, por exemplo, que numa homenagem a Camões, o Poeta reforce o mito, não pela reprodução de lugares-comuns da genialidade, mas antes pelo deslocamento da grandeza do Poeta para um território humanizado, claramente aquele que foi seu, da sua vida, da sua poética: o mundo real, onde o prazer, a boémia, o excesso e a vertigem foram as molas catalisadoras. A abrilhantar o conjunto, um Camões que regressa aos nossos dias, expondo a vulgaridade em que a condição humana se instalou, à qual se resignou e, pior que tudo, de onde se recusa a sair:

MEMÓRIA DE LUÍS VAZ DE CAMÕES
Na auto-estrada do norte, de jeans coçadas e óculos escuros, uma longa trança sobre os ombros, rumo às florestas de abetos, a mochila cheia de coisas esquisitas, pássaros mortos, malmequeres de plástico.
Na auto-estrada do norte, a camisa ainda molhada do naufrágio, a pequena empregada da boutique desaparecendo para sempre nas águas do Índico.
Na auto-estrada do norte completamente pedrado.

(Jorge Sousa Braga)

4 comentários:

  1. O poeta nu investido de versos, mais uma descoberta d'além mar. abraço

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  2. Fiquei muito curiosa, principalmente porque como leitora ainda me sinto na fase da descoberta ("mto verde")...
    Obg pela sugestão!

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  3. me deu vontade de ler o livro e me aproxima da poesia do citado poeta

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  4. Gostei muito de vir aqui ler... Descobri tb um pouco assim a poesia do Jorge e nunca mais deixei de o ler..ou de o ir lendo . E já deixei muita coisa dele lá no Primeiramente
    Beijo

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