quinta-feira, 3 de junho de 2010

hora de ponta

10 horas da manhã. o sol faz levitar a paisagem bem acima da embriaguez nocturna, indiferente às fotografias desbotadas que escorrem pelas artérias do corpo. sorrisos de pedra para lá, esgares iracundos para cá, num alvoroço tépido que penetra os poros do 8.º andar daquele prédio velho que chora as memórias de um tempo sem ruína.
bom-dia! como está? estimei vê-lo! e logo os lábios se fecham na turbina tóxica da viagem que parece perder-se no próprio des[a]tino.
aqui, o rugido de um autocarro, ali, o vómito de um cacilheiro, aqui e ali máquinas em estrépito viril violando o silêncio nos tímpanos cansados de um coração arquejante como a rabeca daquele cego que durante anos não consegui ver.
meio-dia! o sol perdeu o mapa da viagem e os corpos tornam-se cada vez mais fotográficos (há-os digitais, em negativo e polaroid). são passos fazendo tiquetaque, braços agitando persianas, relógios em colapso cardíaco, lojas sem cães, armazéns, máquinas, automóveis, camiões, cortadores de relva, britadeiras, betoneiras, aviões a jacto, tudo a relembrar à eternidade que foi inventada para morrer, bem ali, no frémito cinzento, na voragem psicadélica, na vertigem magra da hora de ponta.
fim de tarde. na volta do sangue, o sol inclina-se sobre o mar, rejeitando assistir ao fluxo giratório de um mundo que não escolheu aquecer. é agora que os termómetros perdem a erecção e os relógios se afogam na afonia de pássaros devastados pelo relâmpago urbano. rostos? apenas um ou outro incapaz de entender como é possível reluzir no escuro.
a noite entrava no corpo. é a hora! as folhas que esquecemos no vulcão quotidiano agitam-se no bailado daquele gato listado pelas cores do amor falhado. o mundo esvaziou-se e a sua respiração suspendeu-se na fita magnética de um filme mudo, a preto e branco. à volta de um candeeiro, pirilampos cortejam a noite enquanto dançam ao som de talheres saltitando na banca ou de corpos em combustão na cama.
e no meio desta selva desflorestada, com cheiro a orvalho e a alfazema, as metáforas bocejam inaugurando o descanso no útero da insónia. já se esqueceram de que cor é o silêncio… já se desabituaram do paladar da quietude… já perderam o emblema da serenidade… no seu corpo estendido no escuro, vive o coração moribundo de uma cidade em permanente hora de ponta que queria saber morrer.



Fotografias de José Figueira

34 comentários:

  1. Ufa!
    Depois disto já não me resta coragem para escrever sobre a minha cidade!
    Beijo e o nosso abraço!
    Laura

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  2. já tens escrito, laura. e olha que nas tuas palavras o porto tem um charme especial ("o despertar" que o diga"!) :-)
    beijinho!

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  3. o alvoroço da cidade em sua ode triunfal, o bulicio das ruas e este mar desavisado de gentes. abração

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  4. a rotina que se cumpre na cidade, a rotina que se cumpre na vida...

    beijinho

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  5. sabes, assis, quantas vezes a cidade não fervilha dentro de nós?...
    um abraço!

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  6. incrível como conseguiste articular os dois universos textuais, sombra: a cidade que fervilha, que aquece, que vive em frémito, que arrefece, que estala os ossos, que perdeu a capacidade de ser sentir a si mesma e... de morrer... é, afinal, uma mulher.
    um beijinho grande!

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  7. foi como se estivesse lá, tal a forma incomparável, como descreveste a cidade que flamejou os meus olhos e sentidos mesmo à distância.
    Adorei!
    Beijinho

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  8. ...e já me esquecia, também adorei as fotografias!

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  9. que mergulho maravilhosos no frêmito deste imenso corpo que é a cidade, vida que comporta em si outras vidas, num emaranhado de respirações tantas, todas elas compondo o mesmo ar.
    pobre cidade que já não pode escolher o silêncio da entrega à noite reparadora...pobres de nós que podemos e não escolhemos o sentir de cada instante

    belas, belas tuas palavras

    e as fotos que mostram tão bem o embaçamento do nosso olhar cotidiano

    um beijo pra ti, querido poeta!

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  10. A aventura humana que ganha a metáfora do movimento natural do dia. A noite é a pequena morte. Entardeceres são outonais. Alvoreceres, primavera e renascimento. A vida sempre nova a cada manhã. "Luzes falham no movimento que leva o dia embora, como barco que some na arrebentação noturna", tenho um poema que diz assim. Querido, grande beijo. Belíssima prosa poética.

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  11. Me identifiquei por demais com a sua cidade, pois a minha também é assim.

    Por sorte, habito em um bairro tranquilo, afastado do centro da cidade, em frente a uma praça arborizada, e assim dá prá contrabalançar todo o resto, que às vezes se transforma em um verdadeiro caos.

    Lindo texto e lindas imagens.
    Parabéns amigo (está tão bem escrito, que por instantes me transportei para aí, e verifiquei tudo in loco...rs)

    Um grande abraço e te cuida.

    Cid@

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  12. no plano puramente físico, esta cidade até se parece mais com a tua do que com a minha, não, amiga andy? :-)
    um beijinho!

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  13. andrea, este corpo plural que conduz à convergência por um mesmo filtro de ar é aquele que apaixona e afasta, seduz e repugna, liberta e cativa... o pior de tudo é quando a voragem urbana se ergue não nas paredes de pedra e cimento, mas nas de tecido e sangue... e tantas vezes isso sucede... dentro de nós...
    um beijinho, querida amida!

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  14. ah, as fotografias... são de josé figueira, fotógrafo lisboeta que conheci nestas andanças da blogosfera. o seu poiso: o photoscriptos. vale a pena passar lá.
    um abraço!

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  15. sabes, ana, quando escrevi este texto procurei desenhar o círculo fechado da vida, numa espeiral de crescimento e quase-morte. a cidade é apenas a metáfora para o corpo que pulsa estripitante, num momento, para logo se tornar rouco e arquejante... mesmo sem saber morrer. o pior de tudo, é que nem na pujança nem na decrepitude físicas o ser se sente completo, inteiro e uno... como a cidade, afinal.
    inclino-me perante a tua leitura.
    um beijinho!

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  16. infelizmente, a cidade (d)escrita está um pouco por todo o lado, querida amiga cida. mesmo contra a nossa vontade...
    em termos puramente físicos, a minha cidade é relativamente pequena (braga: a terceira do país e com pouco mais de duas centeneas de milhar de habitantes, na zona urbana e periférica). nada de mais, sobretudo se comparada com as grandes metróploles do mundo.
    um beijinho!

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  17. Nossa vc descreveu todos os pequenos detalhes, todos os silêncios miúdos e gritantes de uma cidade...

    Adorei teu canto!!!

    bom final de semana!!
    bjo

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  18. "sorrisos de pedra para lá, esgares iracundos para cá, num alvoroço tépido que penetra os poros do 8.º andar daquele prédio velho que chora as memórias de um tempo sem ruína".

    Pungente retrato das grandes metrópoles.

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  19. sem dúvida, no campo físico parece-se com a minha, quer dizer, mesmo minha, será o Funchal!
    Hihi
    vou lá passar!

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  20. prosa, poesia... tanto faz.
    a beleza faz morada aqui.
    e ainda tem umas imagens de tirar o fôlego, jorgíssimo.

    como dizemos lá em minas... bão demais...

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  21. obrigado pela visita, ju! esta cidade agradece!
    um abraço!

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  22. pois é, andy, por momentos esqueci-me de distinguir a tua cidade do sangue com a do coração (a slorida funchal)...
    ainda assim, creio bem que as sensações da cidade (d)escrita podem ser experimentadas até numa aldeia... é que ela fervilha, recorrentemente, dentro de nós, não concordas?...
    um beijinho!

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  23. desta vez deu-me para a nostalgia de um tempo e de um lugar que nunca tive e que talvez nunca venha a ter. por o sentir real, apenas, em nuvens de fumo, é que a pungência o atravessa.
    um beijinho, vanessa!

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  24. querido amigo roberto, "bão de mais" é a tua presença assídua. um luxo! :-)
    um abração desde braga, metrópole que te espera!

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  25. A urbe de cara lavada... - Uma relação de amor e ódio delimitada por linha tênue.

    Remeteu-me até o meu 'Pulgas de Concreto' (http://historiasreinventadas.blogspot.com).

    Beijos, caro poeta!
    Lou

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  26. passei lá, lou. não conhecia, mas já estou a seguir. incrível o emparelhamento urbano daquele "pulgas de concreto" com esta cidade.

    um abraço!

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  27. Pois é amigo, agora imagine a cidade que eu moro, que tem mais de dois milhões e meio de habitantes!!!

    Mas em compensação, é considerada uma das melhores cidades prá se viver no Brasil (Belo Horizonte - capital do estado de Minas Gerais).

    Meu filho mais velho, mora em São Paulo (capital), e aquilo sim é uma verdadeira LOUCURA!!!...rs

    Quanto ao caçula, não aguentou nem Belo Horizonte, e foi morar em um condomínio, um pouquinho afastado, em um vale cercado por montanhas, árvores e cachoeiras. Um verdadeiro paraíso, para onde me desloco quando estou precisando refrescar a cabeça...:)

    Estou de passagem também prá te agradecer as visitas, e te desejar um final de semana abençoado, okey?

    Um grande abraço

    Cid@

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  28. bem vi a catarse de palavras e sentires desta cidade de cimento e sangue.

    vim apenas deixar-te isso:

    Ergo uma rosa...(josé saramago)

    Ergo uma rosa, e tudo se ilumina
    Como a lua não faz nem o sol pode:
    Cobra de luz ardente e enroscada
    Ou ventos de cabelos que sacode.
    Ergo uma rosa, e grito a quantas aves
    O céu pontua de ninhos e de cantos,
    Bato no chão a ordem que decide
    A união dos demos e dos santos.
    Ergo uma rosa, um corpo e um destino
    Contra o frio da noite que se atreve,
    E da seiva da rosa e do meu sangue
    Construo perenidade em vida breve.
    Ergo uma rosa, e deixo, e abandono
    Quanto me doi de mágoas e assombros.
    Ergo uma rosa, sim, e ouço a vida
    Neste cantar das aves nos meus ombros.


    (e o meu melhor abraço pra ti, amigo poeta!)

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  29. Belissimo escrito com lindas imagens..

    Ou seja, perfeita colagem.

    abraço meu caro!

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  30. Tua poesia é mais, ais, cais... bem além que se possa intuir.

    Tem em mim uma fã !

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  31. cida, há uma montanha de blogfriends com quem interajo que é justamente de Minas Gerais. Eu próprio já sou fã de Minas e do seu Cruzeiro, hehehe).
    um beijinho de bom fim-de-semana, na expectativa de que possas descansar!

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  32. afinal, por entre monstros de ferro, sons estridentes, gigantes de pedra, ecos guturais e poços de lava humana... resistia uma rosa. essa mesma, querida amiga andrea! a tua, pela mão de saramago! obrigado!
    um beijinho!

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  33. sempre tu e as palavras-sorriso, juan.
    um abraço!

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  34. és sempre bem-vinda, cris (rubor discreto nas faces). sempre!
    um beijo!

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