10 horas da manhã. o sol faz levitar a paisagem bem acima da embriaguez nocturna, indiferente às fotografias desbotadas que escorrem pelas artérias do corpo. sorrisos de pedra para lá, esgares iracundos para cá, num alvoroço tépido que penetra os poros do 8.º andar daquele prédio velho que chora as memórias de um tempo sem ruína.
bom-dia! como está? estimei vê-lo! e logo os lábios se fecham na turbina tóxica da viagem que parece perder-se no próprio des[a]tino.
aqui, o rugido de um autocarro, ali, o vómito de um cacilheiro, aqui e ali máquinas em estrépito viril violando o silêncio nos tímpanos cansados de um coração arquejante como a rabeca daquele cego que durante anos não consegui ver.
meio-dia! o sol perdeu o mapa da viagem e os corpos tornam-se cada vez mais fotográficos (há-os digitais, em negativo e polaroid). são passos fazendo tiquetaque, braços agitando persianas, relógios em colapso cardíaco, lojas sem cães, armazéns, máquinas, automóveis, camiões, cortadores de relva, britadeiras, betoneiras, aviões a jacto, tudo a relembrar à eternidade que foi inventada para morrer, bem ali, no frémito cinzento, na voragem psicadélica, na vertigem magra da hora de ponta.
fim de tarde. na volta do sangue, o sol inclina-se sobre o mar, rejeitando assistir ao fluxo giratório de um mundo que não escolheu aquecer. é agora que os termómetros perdem a erecção e os relógios se afogam na afonia de pássaros devastados pelo relâmpago urbano. rostos? apenas um ou outro incapaz de entender como é possível reluzir no escuro.
a noite entrava no corpo. é a hora! as folhas que esquecemos no vulcão quotidiano agitam-se no bailado daquele gato listado pelas cores do amor falhado. o mundo esvaziou-se e a sua respiração suspendeu-se na fita magnética de um filme mudo, a preto e branco. à volta de um candeeiro, pirilampos cortejam a noite enquanto dançam ao som de talheres saltitando na banca ou de corpos em combustão na cama.
e no meio desta selva desflorestada, com cheiro a orvalho e a alfazema, as metáforas bocejam inaugurando o descanso no útero da insónia. já se esqueceram de que cor é o silêncio… já se desabituaram do paladar da quietude… já perderam o emblema da serenidade… no seu corpo estendido no escuro, vive o coração moribundo de uma cidade em permanente hora de ponta que queria saber morrer.
%5B1%5D.jpg)
.jpg)
Fotografias de José Figueira