Passaram-se já quase dois meses desde que me despedi das minhas viagens plurais (circum-viagem). Não há, todavia, filho do mar que dele se ausente por muito tempo... pescador, marinheiro ou simplesmente (aprendiz de) poeta, o mar torna-se mais forte que o desejo de o matar...
E tudo porque, como o mar sacia a fome de peixe ou a sede de aventura, é também o mar que sacia a voz, sempre seca e sedenta de canto, de verso, de poesia, num movimento que tem tanto de sensorial como de verbal.
Em Circum-viagem, fui Neptuno, Jasão e Ulisses; em Viagensdeluzesombra pretendo, apenas, ser Jorge, alguém que, com o olhar sobre o sal imenso que cruza, aproximando horizontes, rostos e vozes, sabe que tão importante como ir é regressar. Qualquer que seja a viagem, ela apenas se cumpre no dia em que voltemos ao ponto de partida, renovados, reforçados, transformados, mas guardando, na essência, aquilo que nos conduziu ao molhe de embarque, numa qualquer manhã brumosa ou soalheira, e nos compeliu a ser embarcação, feita canto e homem.
Nesta viagem, espero voltar a cruzar-me com outras embarcações, com diferentes marinheiros e desconhecidas marés, com gente que passa e gente que fica; acredito poder voltar a tocar vozes, mãos, rostos e emoções, conhecidas ou meramente desveladas pela sede incessante de viajar para ser.
Viagensdeluzesombra iniciam um novo ciclo; não sei se é um recomeço, se uma renovação, se uma continuidade, se, apenas e só, o cumprimento de um desejo: o de não morrer para a escrita e para o mundo... Sei bem como a tinta sobre a superfície branca pode resgatar e redimir; sei também que pode, qual lâmina afiada, esquartejar o verso e a mão que o anima... (oh, se eu não o sei...). Mas, mesmo sabendo como Ti João das Almas, personagem de Bernardo Santareno em O Lugre, tinha razão ("o mar tomou conta dele, queimou-lhe as tripas com o sal, dobrou-o todo, encheu-lhe a alma de ventos ruins... fez dele isto, um bocado de desperdício sujo..."), que há-de fazer aquele que se desnuda através da palavra líquida, senão alçar a voz para que o fogo verbal não arda dentro de si, se agarre às artérias e, jorrando golfadas de fel, lhe consuma o coração, numa batalha desigual e injusta... Hoje, mais que nunca, percebo que nunca se escreve para si mesmo. Ouvi-o dos diferentes mestres e das muitas cartas-de-marear que fui consultando ao longo da viagem ("Malvado, que hás-de dar cabo de mim! Tantas me hás-de fazer... Maroto! Meter-se pelo mar dentro, sozinho! Se não dão conta, morrias-me ali afogadinho, ladrão!... - in "O Mar", de Miguel Torga); aprendi-o quando, como o Silvino de Torga, quase dava corpo às palavras de Mariana na mesma obra: "É o mar que os cria, e é o mar que os leva...".
Assumo, de novo o mar; abro os braços, como outrora, para os horizontes que esconde; encho os pulmões e inundo o corpo de maresia. Ainda assim, jamais sozinho. Quem sabe assim o sol volte a acender as velas da nau poética e existencial...

Foto de Márcia Magalhães
"Viajo para escrever
Escrevo para recordar
Recordo para sonhar
Sonho para não deixar de viver..."