vai ser preciso sangrar as palavras
vai ser bom ver correr o vidro das palavras
a palavra partir a palavra chegar
Mário Cesariny
fotografia de jorge pimenta
escavo os versos devagar
outrora visões de futuro,
hoje dicionário dos corpos
que desintegram bocas e desprendem memórias
na aridez da palavra listada.
talvez agora não saiba as suas sementes,
talvez já não adivinhe a terra e o sol
ou a germinação da cal
porque a geada queima os dedos e seca a tinta.
e a mão, vazia de gente,
esqueceu o lugar das palavras
lascou o verso
e quebrou a estrofe,
numa obra inacabada, injuriosa, quase falsa.
Na cela da escrita,
flores de papel libertam pétalas
com toda a linguagem
como se o poema fosse apenas
um corpo fotográfico
despido de verbo
sintaxe nua de frutos sépia
quase murmúrio
a empurrar-nos para o início do tempo,
onde as árvores tinham raízes de alfazema
a explodir na seiva das coisas
em rotação e translação de braços:
a nossa primeira pele
deitada na noite-beijo que sabe morder os lábios:
o silêncio de todas as coisas.
no poema incompleto ainda somos respiração infinita.
é assim o tempo das fotografias
e de todos os nossos versos lentos.
toranja, quebrámos os dois