sábado, 25 de fevereiro de 2012

ode para quereres e olvidos [e outros tantos desassossegos]


Se um dia pudesse adquirir um rasgo tão grande de expressão, que concentrasse toda a arte em mim, escreveria uma apoteose do sono. Não sei de prazer maior, em toda a minha vida, que poder dormir. O apagamento integral da vida e da alma, o afastamento completo de tudo quanto é seres e gente, a noite sem memória nem ilusão, o não ter passado nem futuro.
Fernando Pessoa [Bernardo Soares], O Livro do Desassossego

fotografia de jorge pimenta


é este o peito que respira
a roupa suja
os olhos tristes,
e porque cada madrugada o acorda três vezes
o número basta para detestar a matemática
das coisas
dos nomes
e de tudo o que deseja.

adormeceu um dia com as pálpebras
sobre um olhar de amêndoa
e nada em si conseguiu ser mais amarelo
no trajeto de uma noite
no aroma do poente
no estrebuchar da borboleta em círculos
no mapa do seu sangue.
acordou viúvo,
num céu de rede, crinas negras
pelas bocas que sonham com cometas
e apodrecem nas vias lácteas da deceção.

ofereceu-se a insónia
e hoje respira assim
lentamente, como todos os comboios
que suspiram pela ferrugem das chaminés
[o único brilho que exibem
por entre as galerias de fumo e poeira da viagem],
e hoje respira assim
intermitente, como o corpo
entre os dias em que desperta
e aqueles em que morre,
sempre apoiados nas pernas,
de face macilenta,
o olho direito nas suas ruas vazias
e o esquerdo no movimento da multidão
que não lhe pertence
que não para nem o vê
que esqueceu as feições daqueles
que não gravou no seu rosto.

começou a escrever
sobre o noturno espaço do seu silêncio
e a cada cigarro de bruma
um girassol morria a grande velocidade
diluindo-se no tempo que lhe violou a semente
e lhe roubou o astro do nome.
passou a estremecer nas folhas
na sombra da tinta
e em todos os mundos que inventava
imitando a fórmula com que amava,
já mal iluminado,
pelas entranhas do seu edifício,
algures nos intervalos das telhas
e dos socos do poema,

ali, onde já nem o pó faz morada.

radiohead, true love waits

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

prantos, voos de asa branca e outros atrevimentos sobre o [uni]verso dos instantes


A certa altura disse-me: “Não basta viver a dor, ainda ter de a escrever”
e percebi que tínhamos voltado ao começo
Pedro Paixão, Amor Portátil

Porto, Piolho [fotografia de Jorge Pimenta]


há uma estrada incompleta em cada manhã.
não sei se chove, se faz frio
mas nela tudo respira
ao longo do alcatrão de imagens
onde até as flores de berma
têm os braços abertos para os dias simples.
procurei reler o tempo e os teus segredos
mas a morte passou de mão em mão
sem qualquer ruído
com nenhuma aragem
nem um vulto de vento
em aproximação noturna;
apenas manhãs
e as suas estradas incompletas.

houve um dia em que me juraste todas as janelas
como se o céu morasse na tua boca
e as certezas fossem a parte líquida do teu mundo,
houve um tempo em que acreditei
em pequenas lâmpadas, pontos de luz
íris e retinas de lírios
a escorrer pelas frestas dos muros.
só que esquecemos que os espelhos refletem imagens
murchas vagas quase esquecidas
em delírios de febre sobre discretas imperfeições.
e a palavra sabe-o.
tu sabe-lo, mesmo que o não digas.
eu adivinho-o,
porque as certezas passaram a ser impulso
de fórmula indefinida
como aquela canção que nos incendeia o jato da melancolia.

sento-me junto à risca do teu nome:
a estrada cospe a minha loucura
e todas as ilhas do teu silêncio.
chamam por mim as pálpebras do adormecer
contudo espero,
cansado,
neste canto de mundo
pelo refrão da canção.

finges morrer
enquanto sonho com as mãos que escavaram o ventre.

radiohead, how to disappear completely

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Entrevista no Roxo Violeta


Meus queridos amigos,
Esta semana o viagens de luz e sombras mudou-se temporariamente para o roxo violeta: http://roxo-violeta.blogspot.com/.
Na sequência do que vem fazendo há já algum tempo, a Tânia Contreras voltou a reunir um conjunto de amigos que, pela palavra, prosseguem na sua implacável missão de desnudar alguns poetas, escritores e escreventes [incluo-me nesta derradeira categoria] da blogosfera.
Confesso que se tratou de uma experiência extraordinária, ainda que exigente, uma vez que nada me é mais duro do que olhar para o interior do agora não "poeta", não versejador, mas homem, responsável pela escrita de alguma coisa. Os jogos de máscaras, os espelhos e demais subterfúgios retórico-enunciativos caem por terra quando, de olhar frontal, nos atiram de rajada com perguntas do tipo “e tu…?”.
O desafio levou-me a encetar diferentes viagens pelas luzes, pelas sombras, já não num sujeito poético, mas na poesia do próprio sujeito: “só reconhece as sombras quem já viajou pela luz”.
O resultado está lá, sempre guiado pela mão de experimentadíssimos artífices do verbo: Joelma Bittencourt, Dani Delias, Tânia Contreras, Mirze Souza, Dade Amorim, Celso Mendes, Marcelo Novaes, Tuca Zamagna, Assis Freitas, Lelena Camargo, Wilden Barreiro, Andrea Godoy, Cris de Souza, Marcantónio e Roberto Lima.
A introdução é um verdadeiro manual de bem escrever e está a cargo do imenso Assis; a ilustração é novo exercício de génio do Tuca; a responsabilidade desta “maldade” é da Tânia.

Um abraço!

ode descontínua e remota para flauta e oboé, canção VIII, olívia byington; música de zeca baleiro  [poemas de hilda hist]

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

etiquetas XVIII


fotografia de jorge pimenta


I. os aromas do tempo

para a assíria,
[http://soprodevidasemmargens.blogspot.com]
a propósito do seu texto …excluído das horas


uva negra
grainha serôdia
em lábios gretados por todos os verões interiores
[aqueles que nunca explodem
senão do lado de fora do calendário].


II. apelo
não me deixes só em cada um dos meus morreres…


III. [in]confidência
são assim as estrelas:
luz sobre todos os lugares onde o corpo aprende a morrer.


IV. a linguagem e [os] nós
saber remexer a treva
pelo reverso dos signos.


V. transfusão
o que muda primeiro:
este inverno ou a tua estação?


VI. floresta: a árvore e o homem
há tantas raízes finas, delicadas, que nos trepam pelo corpo
agitando oceanos de lava e sangue.


VII. errância [ou a segunda vida de prometeu]
continua a fugir e não sabe se alguma vez se encontrará.
[prometeu que não se deixaria apanhar].

canto de ariana, canção IV [poemas de hilda hilst; música de zeca baleiro]