É, seguramente, uma das mais lidas, encenadas e vistas peças de teatro escritas em português: o Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente.
Poderá pensar-se Oh, não, esta peça outra vez?, tantas são as vezes que é estudada e, talvez por isso mesmo, vista por alunos e professores, em diferentes propostas, ao longo dos anos. Todavia, não conjuguemos planos que, na génese, pertencem a quadros distintos: por um lado, existe a peça, património do dramático, objecto de estudo na sala de aula, como tantas outras; por outro lado, existe a representação proposta por companhias de teatro mais ou menos credenciadas, de norte a sul do país, em sequências de espectáculos a que todos os nossos jovens de 9º ano assistem; num terceiro plano, existe a apropriação do texto e a sua interiorização em cima do palco, por recurso a um conjunto de linguagens (dramática, cenográfica e musical) que complementam a linguagem académica (tantas vezes teórica e teorizante), consubstanciando-se esta nova acção numa aprendizagem segura, sustentada e significativa, ou não fosse polida pelo crivo da experiência.
Assim nasceu o projecto Crescer no Palco, em 2009/2010, então com a representação de uma adaptação da obra O Macaco do Rabo Cortado, de António Torrado, a que se deu continuidade, em 2010/2011, com a mais conhecida das obras de Mestre Gil.
Os trabalhos arrancaram bem cedo, no início do ano lectivo, por altura em que se procedeu à atribuição de papéis pelos 23 alunos da turma, logo após um breve casting baseado, quase que exclusivamente, na leitura de trechos de cada cena. Seguiu-se o trabalho de memorização do texto em simultâneo com os primeiros movimentos de palco para desinibir a ajudar a interiorizar a personagem, os seus tiques e comportamentos.
Já no segundo período, foram tomadas decisões relativamente aos adereços (integralmente recolhidos e, quando necessários, construídos de raiz pelos alunos e seus encarregados de educação) e ao som a incorporar na representação (que contou com uma selecção que ia desde música palaciana ao Heavy Metal, havendo ainda incursões pela música clássica e cinematográfica de permeio). Foi ainda nesta fase que o Professor de Educação Visual, Francisco Assis, projectou, concebeu e concretizou, juntamente com um grupo de alunos da turma, toda a cenografia da peça. A definição de aspectos pendentes acabou por ser solucionada pelo Professor Zé Manel que, com a sua experiência e voluntarismo, resolveu franjas sensíveis que acabariam por tornar-se determinantes no desenvolvimento dos trabalhos (ex.: sistema de som, adereços que os alunos não conseguiram recolher, cortina no palco, etc).
Eis-nos, assim, chegados ao dia por todos esperado. Foi no 29 de Junho que os EE, familiares, Professores, AAE e amigos dos “actores” se deslocaram à escola para assistir ao trabalho de um ano que se materializou em cerca de uma hora. Uma sala quase repleta, aplausos com o brilho nas mãos, algumas lágrimas esquivas e um Gil Vicente que teima em permanecer junto de nós (apesar dos 500 anos de vida) são o garante maior de que a iniciativa cumpriu integralmente tudo quanto os seus promotores idealizaram.
Um ano desaparecia como areia breve por entre os dedos dos jovens actores. 60 minutos parece pouco tempo para tamanha empresa preparatória, mas há tempo dos homens com cuja tinta se escreve a própria eternidade… ainda que no papiro da memória.
marilyn manson, the beautiful people
[música utilizada na cena do sapateiro]