zambujeira do mar
com as tardes encaracoladas nos dedos
encontrei pontos negros na pele.
percebi, então,
que o homem já não precisa do corpo
a poesia despede o coração
as balas dançam com os amantes
e toda a sujidade é a roupa branca
a engalanar os lacraus peçonhentos
que sodomizam as cidades.
encolho os ombros,
dobro o jornal e levanto-me
com o mundo enrolado debaixo do braço.
sigo para a porta e já sei a verdade:
nas notícias dos homens,
implora-se a deus que não chova;
importa não lavar a terra que trazemos agarrada aos olhos.
dark dark dark, wild goose chase
The National no Coliseu:
os tectos perfumados das palavras em acordes de violetas
À medida que passamos pela vida, vamos elaborando pequenas agendas mentais onde guardamos aquilo que temos de fazer antes de nos completarmos. Aquele livro adiado, a visita ao amigo cujo rasto se desviou da auto-estrada da vida, o país sonhado…
Do meu ainda pouco explorado rol de afazeres obrigatórios, há dois concertos: Os Interpol (planeados para Agosto) e, sem coincidências, este dos The National.
O palco foi o Coliseu do Porto, ontem mesmo, dia 23. Impossível não o adivinhar: duas horas antes do horário previsto, as ruelas de granito escuro desviam o olhar do tédio dos fins de tarde para se fixarem na atmosfera variegada de todos quantos, como eu, têm já bloco de notas existencial.
Conjugar o Porto com The National parece tarefa tão natural quanto óbvia. Como a cidade, esta banda norte-americana tem uma pele negra mas elegante, onde as paredes do exterior guardam, ciosamente, uma complexa rede de emoções que, como o do comum dos mortais, se cose com as linhas da melancolia, não dessa barata, que assina clichés em arrufos, ou castigos na boca dos piegas; falo da melancolia que desagrega redimindo.
São assim os The National: não se entregam a melodias imediatas, coloridas e adolescentes, capazes de, num estalar de dedos, oferecer os louros das charts para, no silêncio seguinte, os arremessarem contra o esquecimento; das letras, apenas a maturidade de quem procura conhecer o Homem, as suas frustrações e delírios, conhecendo-se a si mesmo. E é neste compromisso sério na relação com o público e, sobretudo, com a música, que a banda de Matt Berninger consolida o seu percurso, hoje, enquanto uma das bandas de maior identidade no mundo.
O Coliseu sabe-o e, por isso, encheu. Cerca de três mil e quinhentas pessoas lotaram-no para um concerto que se previa (eu previa!!!) intimista, noire, convidando à cadeira com leves meneares de cabeça e lentas projecções de perna. Puro engano. The National são um verdadeiro lobo com pele de cordeiro. O soturnismo e a melancolia dóceis também sabem incendiar as plateias com fogueiras de energia e carisma musical. Literalmente. E a razão é uma só: a natureza da sua música faz-nos viajar numa montanha-russa melódica, ora viajando nos acordes graves da voz de Matt (há ali tanto de Nick Cave!), apenas acompanhados de leves gemidos instrumentais, ora mergulhando na vertigem rítmica onde a delicadeza da voz se converte em clamor ferino. Escusado será dizer que bastaram não mais que duas músicas para que a plateia se erguesse e os mais afoitos se esgueirassem, por entre cadeiras, até à boca do palco, fazendo recordar os concertos ao ar livre nos festivais de Verão. E foram cerca de duas horas de saltos, de braços no ar e de gargantas unidas a reafirmarem que os bons concertos não têm forçosamente que seguir a receita standard, com milhares de pessoas, riffs de guitarra isolados ou mediatismo; os bons concertos também se fazem em lugares de culto, com um público restrito mas conhecedor, que sabe tirar partido daquilo que valoriza verdadeiramente.
No final, dois encores surpreendentes. No primeiro, se Mr. November fez explodir o coliseu, este anfiteatro ruiu quando, com Terrible Love, Matt Berninger se passeou junto do público, como se numa festa de amigos estivesse desde a primeira hora. No segundo encore, uma proposta diametralmente inversa: Vanderlyle crybaby geeks, unplugged, entoada numa garganta única por todos os Nationalists (termo sem conotações algumas para além da ligação à banda) ali presentes.
No final, as mãos desceram ao bolso para actualizarem a agenda. Surpresa: o concerto não surgia riscado, antes exibindo caracteres tão maiores quantas as emoções de mais uma noite inesquecível no Coliseu. Afinal, sempre há coisas que não se completam nunca. Quando é que eles regressam?
the national, conversation 16