quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

o circo


pedra pão
vidro fogo
sombra luz
vida vida

fotografia de José Figueira


olhaste por cima do ombro
e adivinhaste os nomes nas cadeiras,
na hora em que o sangue se torna mais rápido
e interrompe a linha que preenche o tempo.

é a hora.
esqueces a pele das palavras
e toda a vulgaridade da linguagem
como a tela suja que sacode o orvalho
para debaixo dos pés.
música vozes aplausos
respiração suspensa,
gritos mudos,
suspiros vozeados,
aplausos
assobios
aplausos
embalados pela vida que inaugura instantes,
os mesmos que esquecem
o frio da cama
o colchão sem molas
a frieza do chicote
ou a itinerância dos passos.
a ilusão
[não dessa que os poetas gastam nos seus versos,
mas da outra,
da verdadeira,
da que transforma o chão de vidros e ácido
em leite e pão],
a ilusão é sonâmbula.

são duas horas
um tempo que o relógio não contou
um tempo suspenso
um tempo em que o mundo girou em torno das tuas mãos,
nesse erguer de pernas
naquele vómito de fogo
no salto acrobático sem rede,
por entre respirações incompletas
arremessos de risos
e disparos de gargalhadas.
são duas horas
que apagam a casa movediça
e escalam precipícios com as pontas dos dedos
enquanto a cabeça estoura entre os dentes das feras.

Texto publicado na rubrica Amigo Oculto, no blogue Trem da Lira (http://tremdalira.blogspot.com/), da Cris de Souza, em 23 de dezembro de 2011, sob o pseudónimo Eurico Portugal.

marillion, out of this world

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

variação sobre a noite de consoada: a primeira ceia



Eu sentia-me vagamente cão. Nem admira. Quando um homem tem o coração cheio de epitáfios e vê as outras pessoas felizes, é natural que se sinta cão.
Gente que sai das pastelarias irradiando espírito natalício; votos de boas-festas; música de sinos... aquilo produzia-me um vácuo interior pior do que a fome.
Altino Tojal, Noite de Consoada, in Os Putos


Ana Margarida Pimenta [2011]

chego-me à noite
que guarda o sabor do pão e da terra
sabes que já acreditei que o homem pode ser feliz
como nos natais-meninos
com lábios apertados
brincadeiras de açúcar
e pinhões enrolados nos dedos
bem ali no tempo das fotografias?

do lado de dentro
há risos, abraços, lábios
e no balanço das pálpebras
todas as palavras
[mesmo as que um dia os homens rasgaram]
aquecem no fogo das gargantas.
há silêncios, hiatos, mãos vazias
nos talheres em lugares distantes
nos erros por corrigir
ou na cera que escorre junto às veias.

do lado de fora
uma luz no interior dos pinheiros
atravessa a seiva
trepa os braços brancos
e toca a estrela de belém,
candeia a acender estradas de alcatrão pelo céu
de onde descem rostos
magros, silentes, alguns já sem memória
vidas que esquecemos – uns
vidas que nunca conheceremos – outros
vidas que vivemos – todos.

é a noite
é o tempo parado, sem existir,
tempo quase gente,
no milagre da sagrada loucura
em que lambemos os sonhos com as pontas dos dedos:
no dia seguinte, o menino já terá nascido,
no dia seguinte, ainda será natal.

alguma vez precisaremos de mentiras
se acreditarmos nas coisas simples?

the pogues & kirsty maccoll, fairytale of new york


i've got a feeling
this year's for me and you
so Happy Christmas
i love you baby
i can see a better time
when all our dreams come true

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

do tempo, do espaço e das mãos que [n]os seguram


Foi para ti/ que desfolhei a chuva
para ti soltei o perfume da terra
toquei no nada/ e para ti foi tudo
Mia Couto, Para ti

alexandre parrot


o lugar é incerto mas foi nele que escavei o fogo.

tu eras névoa com sementes a treparem a pele
enquanto segredos escorriam pelas cerejas dos lábios
nesses dias em que pernoitavas em mim.
o tempo, o do corpo,
umas vezes nu com pássaros na espessura
outras trajando a luz que entrava pelo vidro
à procura de pedaços de céu
e agitações lunares.
e eu fui árvore mastro navegação
com as mãos a segurar o olhar
para não ver os silêncios que ardiam
para não ouvir as palavras que iludiam.

no quarto, a respiração dos invernos do corpo
sem peso sem forma sem textura
escondendo meias vidas
pressentindo todas as vidas
ali, aqui, em qualquer lugar.
nesse tempo não conheci calendários
despedi pontos cardeais
e os dias foram uma sucessão de ar
sem início e sem fim
como se as manhãs e as noites fossem um só corpo,
calçando almofadas sobre as lâminas da realidade.
e foi aí, no tempo incerto dos nossos lugares,
que os lábios foram lábios
que a pele se fez pele

e o sonho toda a linguagem que dispensa bocas para ser verdade.

red house painters, song for a blue guitar

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

ponto negro para páginas brancas de claridade duvidosa


Éramos feitos das mesmas palavras impossíveis, impronunciáveis.
J. L. Peixoto, Cemitério de Pianos

fotografia de Pedro Ferreira

ponto negro.
marca mínima a balouçar na pequenez,
tinta, terra ou pedaço de pele?
ponto negro. apenas.
nenhuma pergunta ou inquietação
decifra o informulado,
e contudo existe
nas costas de um ponto: negro, simples, simplesmente,
a horas diversas, em dias diferentes,
numa qualquer estação do corpo.

ponto negro. quase insignificante.
voltam as perguntas a arrancar silêncios
as exclamações a revolver utopias
mas a distância entre a árvore e o inverno
é a mesma que a separa do estio,
a mesma que distingue o fruto adivinhado
do fruto roído.
e o equilíbrio é labirinto suspenso,
rede de todos os caminhos,
como a noite que não sabe para onde ir
e que não cessa, nunca,
no poema
nas mãos
no ponto negro.

são tantas as vidas que nunca viveremos
neste ponto negro
[a tinta sempre extingue o seu sulco].

rodrigo leão com thiago pethit, o fio da vida

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

boca incompleta e todas as figuras menores

A poesia vai acabar, os poetas
vão ser colocados em lugares mais úteis.
Por exemplo, observadores de pássaros
(enquanto os pássaros não acabarem).
Manuel Pina


fotografia de Jorge Pimenta

boca incompleta.
os cabelos caem sobre a fronte
alagados em silêncio.
há copos, risos
dentes brancos, dentes escuros
lábios menstruados
e todas as formas,
mesmo as mais complexas,
perdem sanidade, ímpeto
em suserano servilismo.

boca
[silêncio na página]
palimpsesto
[cântico na terra]

com a mão, agita-se
oceanos negros e veias,
navios anónimos e invernos,
uns e outros noturnos, curvados, quase vencidos
pela morte que ousaram combater
em verso – esse álcool louco do poeta
adormecido em cada tulipa das estepes.

boca incompleta.
o cachecol é levantado para o pescoço
acaricia a garganta
atravessa o inverno
e ressuscita o cadáver
na única forma humana que não tarda: o poema.

com a poesia se constrói o homem e as suas cidades.
com a poesia toda a boca é incompleta.

david bowie, wild is the wind

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

ode às mãos, ao amor e ao tecido do tempo

De mãos é cada flor, cada cidade.
Ningúem pode vencer estas espadas.
Manuel Alegre, As Mãos

as mãos: a palma e as costas [fotografia de jorge pimenta]


é a mão quem me guia.
hoje,
sobre o poema inconcreto.

houve um tempo em que fui as mãos
sobre a largura das coisas
em toda a extensão do corpo,
em cada olhar teu.
percorri-te inteira,
quando a luz crescia sobre o teu nome
e a escuridão abria brechas no meu.
amansámos as águas e os remoinhos
soubemos o nome dos oceanos
distinguimos as correntes,
tu, mão
eu, ainda mão
a tocar, a acender, e explodir
na translação marinha
daquela nau que jurou as índias ao casco
daquela vela que prometeu os lábios ao vento.

é a mão quem me guia.
hoje,
sobre nuvens
a adormecer antes da chuva.
pergunto-me se ainda sei o teu nome
ou se os peixes reconhecem o aquário da tua voz.
responde-me a memória que te imita como se escrevesses.
apago o rasto de tinta com a cor do teu batom;
é que se a pele secou
ainda é a mão quem me guia.
hoje.
talvez nunca mais.

the cinematic orchestra, to build a home

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

auroras, canções e açucenas para vozes [des]alinhadas


aprendíamos a amar, aprendíamos
a morrer.
Eugénio de Andrade



fotografia de jorge pimenta


é nas estações frias que o corpo dói – disseste-me.
a fortuna é um vento seco a crescer da terra
para nos segurar as mãos
inútil, excessivo, tardio,
como os pulsos cortados daquele sol de fim de calendário.
nunca soube o que aprendemos sobre o amor
o cântico aceso dos versos
ou todas as flores que nos desciam pela boca;
e estivemos sempre tão longe de adivinhar a morte.

o amor é um jornal velho sobre a voz – disseste-me.
um desperdício, um número, um acontecimento sem rosto
para os abismos do coração,
dos barcos a navegar em tinas de roupa suja.
quisera o homem não saber ler
não poder ver
[os olhos perderam os telhados do céu],
quisera ele,
esquecido, sobre a relva.

o café assobia na chama,
enquanto as mãos, cada vez mais pequenas,
se dobram de frio no oxigénio da respiração primeira.
o corpo? inerte, imóvel, fechado.
há chaves que se perdem para sempre.

catpower, wild is the wind

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

livros lacunares para hesitações, dois naufrágios e toda a cegueira

No fim tu hás de ver que as coisas mais leves são as únicas
que o vento não conseguiu levar...
Mário Quintana

denis olivier


fechei o livro e todos os rostos que nele habitam.

já sei tudo, tudo:
li barcos, mares, marinheiros
e toda a ancoragem pelas florestas do peito,
aprendi rostos em penumbra
com sorrisos de meio lábio e todo o fogo,
encontrei cânticos embriagados nos telhados
e vozes que crescem no labirinto das mãos.

sim, sei tudo e quase nada me assusta:
da morte e da loucura do sangue
da mitologia da ausência
ou das noites inteiras, intactas, soberanas
[como aquele olhar que é só teu].

sim, sei tudo sobre todas as coisas,
aquelas que adormecem, um dia, pelo tempo fora.

podia saber talvez mais sobre o amor,
essa bebida que entornamos devagar,
gota após gota,
sobre pálpebras de respiração e suor,
quentes, monossilábicas, quase impercetíveis
como vendavais no corpo e na vontade do corpo,
quase sempre chuva,
quase sempre debaixo da chuva.

do que sei e nunca saberei,
a certeza de que
o homem ama antes de todos os livros.
[terá este livro sido escrito, já?]
Marisa, Chuva

sábado, 5 de novembro de 2011

De todos o lugares [in]acessíveis – voz canto palavra silêncio

algures nas ruas e vielas do porto

Ao Roberto Lima, amigo jornalista e escritor [cronicasderobertolima.blogspot.com], recém-chegado ao Porto, e que me tem dado o privilégio de com ele privar até domingo.
Aos meus amigos dos blogues, com votos de que o tempo se faça nosso, um dia, não apenas através dos dedos, não apenas na tinta, mas inteiro, absoluto, na madrugada fresca do nosso abraço.

Dead Combo, Esse olhar que era só teu

[Reencontro]
E quando o caminho perder os pés?
Acaso os frutos silvestres chegam
para lhe temperar a latitude, a longitude
e o desejo de ser percorrido
como todos os horizontes maiores que não sabem morrer?


ribeira do porto - 1

ribeira do porto - 2

ribeira do porto - 3


04 de novembro de 2011
Fiz-me à estrada. Não, não foi ontem, mas num dia de setembro, banal por certo, talvez até chuvoso como hoje, mas que adivinhou mais uma vida por detrás dos seus olhos abertos. Sim, foi nesse dia que me fiz à estrada porque fiz toda a estrada. E o alcatrão abriu-se diante dos meus braços, suspirante, tão leve que parecia flutuar, rir, agitar-se por entre as ramagens da timidez e do berço.
Foi num desses atalhos de trilho incerto, bem perto de todos os instantes, que os dedos me levaram para longe, bem longe – um homem perde-se sempre caminhando numa avenida em linha reta. Chovia. Pensei tratar-se de Belo Horizonte, primeiro. Consultei a carta que inventou a geografia e todos os geógrafos que têm nome e o souberam viver e cheguei a Jersey. Ao lado da América, Portugal; daí, num pequeno salto, o mundo, como ele só, imenso, sem metades, antes mão e corpo num abraço só. E o Roberto Lima, na sua máquina de escrever, chegou a todos os lugares e a todos os eus que os habitam. Já lá vão dois anos, mas o que é o tempo senão essa malformação genética que os deuses inventaram para nos humilhar e suster no desejo de voar?
O tempo é o Homem, dizia Borges, de olhos fechados para o mundo mas com a lucidez estendida para o Homem. E a chuva varria a harmonia do esquecimento. No dia em que me consegui ler nas palavras de Borges, despi-me de relógios, parti ponteiros, matei o sol ao mesmo tempo que gritava impropérios a Cronos e às demais divindades que escarnecem da sua criação mais imperfeitamente irresistível – o Homem. Percebi então haver uma luz que segue Borges e que nem eu, com os dois olhos bem abertos, consigo tocar, nas minhas dúvidas, aspirações e demais acordes de um fado sem guitarra, tão somente com alguma voz e frio, como as noites de novembro, chuvosas, numa qualquer cidade portuguesa.
O Porto, por exemplo. Ontem, na tasca da D. Helena, ali no coração da Ribeira, ao som da Polka [o fado, envergonhado e com os pés encharcados, temente da noite e da gripe, recolheu à cama cedo], revisitando a vida tão contrária em tantas palavras, a maioria de um conceito só, enquanto o rio encolhia os ombros, indiferente à indiferença daqueles que o abandonam por recearem que Noé tivesse perdido a arca no dilúvio neobíblico deste novembro português.
O Porto, de novo. Ontem, no Zé de Braga, confundindo a geografia, por esconder na Augusta cidade do Minho que lhe doura o nome tantos rostos e esperanças, desde Viseu a São Paulo, passando por todos os lugares que nos crescem na viagem.
O Porto, ainda. Ontem, com vinho do Porto, de aroma inalterado pela terra, cor rubi, lágrima Christi, o paladar de Adamastores e velas de linho e vento como aquele papel que entregamos secretamente, sem remetente ou destinatário, mas que sorri da tinta vazia, porque inscreve as coordenadas na mão que o riscou.
E o tempo foi nosso, porque o fizemos nosso. E o tempo foi o Porto, foi a Ribeira, foi o lugar e todos os lugares e todos os rostos e todos os nomes e nós. E nós.
Recomeçara a chover.

Já é tarde; daqui a pouco há mais: os Trovante e os seus cabelos brancos, já com 35 anos de carreira. Eles, como o Roberto e todos os meus amigos, tornaram-se aquela marca de pele que resiste ao tempo. Não que o tenham aprendido a matar; antes deram-lhe vida e souberam levá-lo consigo.


05 de novembro de 2011
trovante e o porto: as células de tantos [re]encontros

na biblioteca da música, a gui, o roberto, o zé manel, eu e a manela [a rosa treinava fotografia] 

E os Trovante vieram. E com eles a flor azul que guarda as montanhas onde barricamos todos as alvoradas e quase nenhum crepúsculo. E sorriam, eles; e sorríamos, nós; o sorriso deles dentro do nosso, o nosso equilibrando-nos noutros, uns de pedra, outros de boca mordida, quando não de chão queimado, de estrelas de pó, de pó de estrelas, de estandartes, de rios fulgurantes, de centauros e foz, de todos os cavalos que galopam sem origem, sem destino, mas com memória.
É que nem todas as coisas do mundo se fizeram para murchar.


Trovante, Xácara das bruxas dançando


sexta-feira, 28 de outubro de 2011

epopeia de pores-do-sol

salvador dali, la esfinge de azúcar


sei-te num retrato
que inaugura pores-do-sol,
pequeno, gasto
como os olhos de um gato adormecido

na moldura chovem refúgios e castigos:
calafrios sustêm o andar
num esquecimento musical,
pedaços de vidro engolem a voz
numa sinfonia despovoada.

sei-te num retrato
que imatura pores-do-sol,
perdido, bardo
como os olhos de um gato amanhecido

na mensura trovem respingos e perigos:
arrepios sorvem o andar
num espaçamento musical,
pedaços de vela encobrem a voz
numa sintonia desnorteada.

e enquanto sorris,
com olhos negros e dentes brancos
e todos os encantos de lume e terra,
roubas-me os passos tortos
com que despia as flores.

algures entre a saudade e o lábio
aprendemos a morrer
na distância um do outro.

e enquanto sentis,
com olhos negros e dentes bastos
e todos os recantos de lira e esfera,
roubas-me os passos tolos
com que desvio as flores.

algures entre a saudade e o astrolábio
aprendemos a morar
na distância um do outro.

(Cris de Souza & Jorge Pimenta)

smog, rock bottom reiser

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

alvoradas com violinos para trópicos de afonia e voz


Às vezes esqueço-me de que sou um ser intermédio, alguém que pode já estar à frente do homem das cavernas mas ainda estou longe daquilo cuja promessa pressinto dentro de mim.
Alçada Baptista, O Tecido do Outono

bate-me à porta, mas devagar - jorge pimenta

cantaste tão baixo
que os frutos apodreceram
e envenenaram-nos as gargantas
com espinhos vermelhos
de uma flor quase rosa.

e eu que queria cantar mais alto que os deuses
saber-te gruta clara
e madrugada em violino.
disse-te um dia que desejei
beber-te o silêncio
deitar-te nos mapas do corpo
e acender todas as luzes que nos cabiam na algibeira.
disse amo-te,
mesmo que numa boca crepuscular.

de todas as cartas em que me foste
guardo uma, apenas,
sem remetente ou selo.
cheira à tua saliva
preserva a textura do teu sangue
e o calor das palavras frias que menstruam a boca:
nenhum corpo se alimenta apenas de versos
e até a eternidade já sabe o que é morrer.

aprendi a escrever para te aprender a perder.



arctic monkeys, love is a laserquest


quinta-feira, 13 de outubro de 2011

voo suicida para todos os instantes perfeitos e dois suspiros

fotografia de jorge pimenta 
I

Estou cansado de ser apenas homem.
Antonio Skármeta, O Carteiro de Pablo Neruda

abro-te estas mãos que não acabam no tempo.
serás tu quem me há de sepultar
assim que mirrem os crisântemos
e o homem esqueça toda a linguagem.
não sei quando, na verdade,
não sou deus
e a catequese está já à distância da memória
por isso espero pelo calendário que marca os dias até morrer
e uma cigana que adivinhe quantos soubemos viver
nos silêncios que esquecem todas as palavras
todas as bocas
e quase todos os beijos.
será que permanecerão em mim,
pelo lado de fora,
os ruídos lentos que me abandonaram,
essa máquina que separa os vivos dos vivos
e nos aproxima dos mortos?

jorge pimenta



fotografia de jorge pimenta

II

[…] e ninguém podia imaginar o mundo de palavras que levava comigo.
Morrer é estar absolutamente sozinho.
[…] na solidão, é-me impossível fugir de mim próprio.
José Luís Peixoto, Cemitério de Pianos

parece que muros se erguem violando o céu sagrado
deixo que o grito se suma mudo
e a terra cubra quem tomba pelas valetas
se é no horizonte que se desenha o futuro,
ainda que a lápis, ainda que alguém o apague
eterno é tudo aquilo que nunca fui

no vasto rol de deuses que me fitam do alto,
com o dedo acusador
sei que há silêncio e gemidos ocultos na carne cansada
e olhos fechados sobre todos eles

eu sei que vou morrer
eu sei que vou, um dia, morrer
eu sei que as asas que me deram não me deixam voar
e eu sei que sei voar
e eu sei que vou voar, no dia que eu sei que vou morrer.

laura alberto


sigur rós, viorar vel til loftárása

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

alucinações inocentes sobre estações áridas e homens de temperatura extenuada


alexandre parrot

a nossa única defesa contra a morte é o amor
josé saramago


houve um verão em que o calor nos preencheu os silêncios
indiferente ao suor que humedece o fumo de um cigarro
e às ondas que nos rebentavam o peito.
perdemos as horas e o que os homens fazem com elas
e quase nada ganhámos.
um coração bate sempre mais agitado do que o poema – dizias,
espreguiçando os braços na fresca seda da pele
talvez à espera que eu escrevesse de menos
ou amasse de mais.
houve um verão em que fomos amantes em tons de violeta
acorrentámos lugares inquietos
amarrámos o medo ao silêncio
e gritámos impropérios à cegueira dos deuses
enquanto corríamos sem saber da linha de chegada,
sempre com pés de tinta
talvez versos nos dedos.
mas de que serve ter um animal vivo
se está dobrado pelo estremecimento dos dias?

agora é outono.
resta-nos sentir a breve saliva dos fins de tarde
e aprender com os que passam sem o saberem.
afinal, o homem é aquilo que o separa do homem.

kings of convenience, boat behind

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

solilóquio para balas e arremessos no revólver da felicidade e de outras utopias

marcelo tabach

só por costume social deveremos desejar a alguém que seja feliz; [...] só se deve desejar a alguém que se cumpra: e cumprir-se inclui a desgraça e a sua superação.
agostinho da silva

há dias em que a felicidade se despede
dos compêndios de uma ciência menor
para se refugiar numa chávena de café
entre o calor do desejo e a nuvem de um cigarro
cada vez mais negra
cada vez mais distante
exibindo apenas a borra no fundo da cerâmica
que a sorvos breves
procurei trazer para dentro de mim.
nenhuma mentira muitas vezes pronunciada se torna verdade
e os dentes caem sempre, um a um,
cansados dos golpes que a palavra desfere
súbita, cínica, sodomita.

há dias em que a felicidade me visita no café
ao fim da tarde
na penumbra que aquece as mãos
e acende escombros em cada sorriso de tinta e palavras.
não, não inventei a insónia
nem sei como é o rosto da morte
na arquitetura imperfeita dos sonhos,
cada vez mais burgueses e anafados
em bocas que persistem em perder o marfim.

há dias em que a felicidade me visita…
sim, eu sei,
é ao fim da tarde que se morre de amores
e o paraíso é somente uma insinuação de pele,
bem ali,
na mesa de café de uma qualquer cidade.


rodrigo leão & daniel melingo, no sè nada

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

retrato de homem para equinócios sem voz: segredos e lábios

evan leavitt, no more passengers



“[…] daí é que nos veio a única certeza que temos […]
em uma noite tão profunda como aquela nos perderemos.”
José Saramago, Todos os Nomes

é hoje o dia
equinócio, outono, setembro
e todo o tempo que se desprende do que há de morrer.

o meu espanto é maior do que a boca
porque caibo numa folha seca
e no fruto vermelho que se estende na erva
depois de rejeitado pela mão que o desejou.
é hoje o dia
e as manhãs despedem olhares
sobre um vento a endurecer os rostos
e luzes de cais a anunciar partidas,
apenas o perfume das orquídeas permanece
como derradeira verdade dos sentidos.

e deixamos de confiar no poema
no poeta
na metáfora
e em todas as mentiras
neste equinócio
com pronúncia de outono
e voz de setembro esquecido
[de repente parece que o mundo murchou
para os que amam por acaso
nestes dias lentos].

é hoje o dia:
já asfixiei alguns sonhos
e deixei de responder à saudade;
é que o coração não tem estações
e seria criminoso deixá-lo morrer de frio.

radiohead, weired fishes

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

canção fria para estações despovoadas

há momentos em que temos de perder
para sabermos o que não podemos deixar de ganhar.

evan leavitt, packing, up, railroad, suitcase, trees

há uma inquietação a lavar-nos
os pomares do nosso verão.
é este vento, esta corrente de ar
ou todo o oxigénio gasto nas palavras
que idolatram silêncios e angústias?
recordo os corpos exaustos
[não tanto como a culpa que não tínhamos]
e a boca seca do bailado
a que atirávamos as nossas verdades.
e todas as respostas cegas nos pousaram nas mãos
com a violência da lucidez
e a nudez de uvas por fermentar no peito.

contaram-me depois
que guardaste as lágrimas na garganta
e atiraste o coração aos cabos de electricidade
que iluminam os passos e os pés,
mesmo que em estações brancas
a queimar os dedos
e a plagiar imagens à memória.
cicatrizei o tempo
e a cada perdão roubado
contrapunha um verso
cada vez mais sujo,
cada vez mais imperfeito
como os borrões de sangue que ousam escrever
todos os dias e todas as ruas que habitaste.

há uma inquietação a lavar-nos
os pomares do nosso verão.
hoje o dia deitou-se mais cedo
e a morte deu dois passos para diante,
bem ali, diante da cotovia que bebe,
sôfrega,
o suco aquecido das frutas
de toda uma estação.

audiomachine, an unfinished life

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

etiquetas XVI

portel, alentejo



I. a casa


ao roberto de lima
cidadão do imenso mundo,
que é o coração

assim é o tecto
sem telha, vidro ou cal
a aproximar o olhar das estrelas
e do seu rasto prometido.
o chão?
todo o universo,
duro resistente intransponível,
como todas as almas sem metáfora
que se moldam
pelas palavras ditas, lidas, pressentidas.
no interior, seja noite ou dia,
todas as histórias
anunciam direcções e rotas
com que se encantam os incêndios
e se iludem todas as urgências.

é este o enigma da arquitectura:
toda a casa
que pensa e sente
ensina a duvidar.


II. conjuração
a imagem percorre
os labirintos de água
onde mergulhamos os pés.

é chegada a era do gelo:
a plenitude não cabe no verso
e o tempo não é de ninguém.


III. as linhas da fábula
saltito de renascer em renascer
à espera de iludir as mãos
de onde tombam pétalas em chamas
e sonhos oxidados.

só na certeza da morte
compreendemos a vida.

luís represas & pablo milanés, feiticeira