Se um dia pudesse adquirir um rasgo tão grande de expressão, que concentrasse toda a arte em mim, escreveria uma apoteose do sono. Não sei de prazer maior, em toda a minha vida, que poder dormir. O apagamento integral da vida e da alma, o afastamento completo de tudo quanto é seres e gente, a noite sem memória nem ilusão, o não ter passado nem futuro.
Fernando Pessoa [Bernardo Soares], O Livro do Desassossego
fotografia de jorge pimenta
é este o peito que respira
a roupa suja
os olhos tristes,
e porque cada madrugada o acorda três vezes
o número basta para detestar a matemática
das coisas
dos nomes
e de tudo o que deseja.
adormeceu um dia com as pálpebras
sobre um olhar de amêndoa
e nada em si conseguiu ser mais amarelo
no trajeto de uma noite
no aroma do poente
no estrebuchar da borboleta em círculos
no mapa do seu sangue.
acordou viúvo,
num céu de rede, crinas negras
pelas bocas que sonham com cometas
e apodrecem nas vias lácteas da deceção.
ofereceu-se a insónia
e hoje respira assim
lentamente, como todos os comboios
que suspiram pela ferrugem das chaminés
[o único brilho que exibem
por entre as galerias de fumo e poeira da viagem],
e hoje respira assim
intermitente, como o corpo
entre os dias em que desperta
e aqueles em que morre,
sempre apoiados nas pernas,
de face macilenta,
o olho direito nas suas ruas vazias
e o esquerdo no movimento da multidão
que não lhe pertence
que não para nem o vê
que esqueceu as feições daqueles
que não gravou no seu rosto.
começou a escrever
sobre o noturno espaço do seu silêncio
e a cada cigarro de bruma
um girassol morria a grande velocidade
diluindo-se no tempo que lhe violou a semente
e lhe roubou o astro do nome.
passou a estremecer nas folhas
na sombra da tinta
e em todos os mundos que inventava
imitando a fórmula com que amava,
já mal iluminado,
pelas entranhas do seu edifício,
algures nos intervalos das telhas
e dos socos do poema,
ali, onde já nem o pó faz morada.
radiohead, true love waits