sexta-feira, 22 de junho de 2012

previsão meteorológica para gente, astros e descaminhos


Descem os primeiros passageiros. De ombros encurvados sob a chuva monótona, trazem sacos e maletas de mão, e têm o ar perdido de quem viveu a viagem como um sonho de imagens fluidas, entre mar e céu, o metrónomo da proa a subir e a descer, o balanço da vaga, o horizonte hipnótico.

José Saramago, O Ano da Morte de Ricardo Reis


fotografia de jorge pimenta


nenhum de nós sabe o cheiro da terra
ou quantas mortes baloiçam nos pingos de chuva
deste junho febril
a dizer versos avulsos
sem rima, rumo ou direção.
adormecemos no tempo que lava as cores
na respiração artificial da memória,
esse magnetismo de descaminhos.

do outro lado da morte
o eterno aroma-menino das palavras
um ou outro poema
e tantas caudas de cometa
a cair sobre os nossos telhados;
quisemos fugir dos estilhaços cósmicos
tentámos evitar a trajetória descendente
mas o tempo ensina a loucura
e suspende a gordura da pele,
que, já seca,
é apenas isco no anzol.

amanhã é julho,
e os dias serão escrita sem idade
ou mesmo morte fingida
dissemos.
tarde demais:
o julho aquece
mas nem toda a chuva adivinha a rota das nuvens:

caberá o coração na bola de papel de um calendário?


carter burwell, medieval waters [banda Sonora de em bruges, 2008]

50 comentários:

  1. também ando às voltas com ela mas e quando ela chegar saberemos o que fazer?

    beijo

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  2. a fotografia está perfeita, o arame farpado, o invisível arame farpado que nos impede de sair desta prisão sem celas, sem grades

    beijo

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  3. tanta coisa que nos cabe e não cabe na rota desavisada das nuvens ou nas efemérides, a rota é um roto desassossego de presságios,



    abraço

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  4. Adorei Jorge! Puxa... Adorei. É isso...rsrs

    Beijo e abraço

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  5. É um tempo atípico, um tempo sem viço...

    Adorei o teu poema.

    Levo este versos para enganar os enganos:

    "adormecemos no tempo que lava as cores
    na respiração artificial da memória,
    esse magnetismo de descaminhos"

    Obrigada!

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  6. MUITO BONITO, JORGE!

    Embora o adormecer seja fuga, pode ser rota de passagem.

    Beijo, poeta!

    Mirze

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  7. já disse que o tempo é asa de poesia... usando-a ele nos escapa,inclusive seu fim!!

    Beijinho,meu amigo mágico!!

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  8. Boa noite
    Gostava de te convidar a responder a uma questão que está no blogue Atmosfera dos livros. Acho que a ideia é interessante daí estar a convidar para a participação de todos os bibliófilos.
    Desde já grata pela atenção dispensada.Ficarei a aguardar a tua participação
    Boas leituras!

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  9. Difícil comentar esse poema. Já estive aqui diversas vezes. Li. Reli. E ainda não desamassei meu coração atingido pelas suas letras. Vou precisar de um tempo para que a racionalidade das letra me explique a das imagens que elas escondem.
    beijoss, Jorge :)

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  10. OI JORGE!
    UMA FUGA DA REALIDADE, IMPEDIDA POR UM ARAME FARPADO IMAGINÁRIO...
    ABRÇS

    zilanicelia.blogspot.com.br/
    Click AQUI

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  11. Oi Jorge,

    Tudo bem? Com Saramago, sua imagem e sua poesia, o meu descaminho vira caminho. O tempo passa, ensina e esquece, sempre.

    Beijos.

    Lu

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  12. Querido, não nessa mesma ordem, mas são inevitáveis a trajetória descendente, a loucura e os versos avulsos. Enquanto outubro não vem...Aquecemo-nos! Beijos cheios de poesia.

    Adri

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  13. Oi Jorge,
    Somos joguetes nesse tempo torto de vidas e mortes, chuvas e sol. E se amanhã é julho, somos grãos de areia para possuirmos o domínio do equilíbrio, junto aos delírios impetuosos e alarmantes dos dias corridos. Será sempre uma incerteza concernente ao dia vindouro. Ficamos, então, a sua mercê.
    Beijos e bom final de semana,

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  14. Oi Jorge
    Seu poema soa como a previsão do tempo_ temperatura em declínio, aproxima-se um furacão ...rs
    e quem se arrisca a perguntar o que o futuro reserva? prefiro pendurar-me nas 'caudas de cometas' camuflando o tempo , esticando-o não com arames mas com laços de ternura.
    Obrigada por presentear-nos sempre com tão lindas palavras permitindo-nos um devaneio nesse junho que se apresenta chuvoso com ventos a mil por hora rs
    Abraços Jorge, Muitos abraços.
    Sempre lindo!

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  15. Do outro lado da morte há outras mortes de mais lados e o tempo. Um tempo que, para poucos, não crava suas unhas em memórias, mas há os muitos que deixam-se fisgar por suas iscas, sua artimanha que encarcera coração e memória.
    Aqui, Julho esfria e eu forjo a rota do sol de fevereiro, apenas porque gosto de morrer no inferno e sambando.
    Desculpa, Jorgito, mas viajei no teu poema e fui sem calendário. Estes versos atiçam as asas. Você, meu querido, é poeta muito além de todos os adjetivos
    bj imenso, meu amigo do coração

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  16. Jorge, querido PoetAmigo!
    Lembrei-me imediatamente ao sentir este teu poema, de parte da música "Causa y efecto" de Jorge Drexler:

    "Estaba dejándome estar
    oyendo el tiempo caer en los relojes de arena
    Mirando un instante partir...
    y otro llegar...
    (...)

    La vida cabe en un clic
    en un abrir y cerrar
    en cualquier copo de avena
    Se trata de distinguir
    lo que vale de lo que no vale la pena"

    Penso na brevidade da vida como um desafio, o de, como diz essa letra "distinguir o que vale e o que não vale a pena".
    Eis a questão: o como deixar que as intempéries interfiram o menos possível no ritmo de nossa alma; e fazer com que nossa alma é que defina as estações, a meteorologia de nossa própria existência?

    No momento que a vida, além de breve sempre parece contradizer todas previsões, em dia de sol e faz chuva; em dia frio e lá está o calor para tirarmos o casaco do nosso tempo.

    Pois creio que aí está o grande atrativo, o que nos instiga e permite simplesmente viver: distinguir o que vale e o que não vale a pena. O demais é apenas continuação, para quem não acredita no fim, como eu.

    Beijos muitos!

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  17. Jorginho meu amigo poeta!
    Viajei nesse poema, como viajam as nuvens que trazem as chuvas... Sem rumo e espalhando-se em casa linha... Admirando esse tour de palavras e sentimentos que você talentosamente plantou pelo poema todo!

    Parbens!

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  18. Incertezas de um tempo, de um corpo, de uma estação que nem sempre é passageira.

    Beijo, poeta!

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  19. Grande amigo Jorge,
    Neste Universo vital gerido pelo Caos, as intempéries são de difícil previsão por nós, mera poeira cósmica.
    Estejamos onde estivermos, tudo é efêmero e célere. Sejamos nós intensos e vívidos em nossos intuitos.
    Poema trágico, mas com exímia dialética e logomaquia, além de sageza e beleza.

    Aqui, mais uma vez, amigo, foste notável.

    Abraços e ótimo fim de semana para ti e família.

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  20. Jorge querido a vida segue. Certos momentos nem o tempo apaga, mesmo que haja arames farpados!
    Beijos, ótimo final de semana a vc.

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  21. Oi Jorge
    Nossa, seu poema me faz lembrar os textos da Lú Santa Rita, é muito profundo, mas é lindo e maravilhoso. Adorei, ainda estou digerindo-o.
    Bjos. e um ótimo domingo.

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  22. Jorginho, em junho parece que tudo outona por aqui. E isso me faz tão bem!

    Me encantam demais as imagens, as tuas fotografias. E teus poemas...queria tê-los escrito, de tanto que me dizem.

    Te beijo

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  23. o tempo: entra pela janela da sala observando com minudência de cirurgião as suas crias sobreviventes...e às vezes, quando a sala está adormecida, ele baila convulsivamente pela sala fora tal como uma bailarina – foi-o ou é, mas não sabe bailar!


    Beijinho Poeta e bom inicio de semana

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  24. Bom dia!
    Esse post está um arraso, parabéns
    Que seu domingo tenha o melhor pra
    deixar vc feliz..Poema encantador!
    Deixo minha frase com carinho pra vc
    Bjuss
    Rita!!!

    Lutar pelo meu direito, é o que tenho feito sempre
    Mas a minha liberdade é unica!
    (Rita Sperchi)

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  25. Tem algo de transcendente que me projectou para outra realidade, quiçá mais verdadeira.
    Um tempo fora deste tempo.

    Gostei, beijos

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  26. Jorgíssimo
    Sempre quero me reinventar com as farpas de suas teias. Mas o cercado não me deixa atravessar,pois não sou poeta.Sei que vivemos sem direção entre estilhaços e descaminhos. Mas os seus versos tem
    rimas, tem rumos, já me sinto aquecida. É inverno aqui e o seu coração amigo cabe em mim. Vem do calendário dos teus versos. Tudo o que preciso.

    Um lindo domingo
    Bjs

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  27. Oi Jorge

    Há cercas no infinito,não que ele as tenha, nós as temos, isto delimita e limita tudo.

    Um beijo grande, cheio de admiração por esta belíssima composição de imagem, música e palavras.

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  28. Olá Jorge,

    "...mas nem toda a chuva adivinha a rota das nuvens". Filosófico, mas profundo, assim como todo o texto.
    Seu talento me impressiona.

    Beijo.

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  29. Suas palavras, poéticas e belas, provocam sentimentos diversos na leitura das entrelinhas. Nada cabe o coração, e muito mais, no calendário, mas tudo permanece no espaço da memória, notadamente a finitude de belos tempos e do próprio tempo.
    Bjs.

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  30. Boa tarde, Jorge. Ah, poeta, o coração é um lugar que por vezes fica aprisionado clamando por liberdade, e é assim que ele deve ser, livre.
    Livre de sentimentos nocivos, do tempo, e preso ao amor, sempre!
    Saudades de ti lá no meu espaço.

    Obs: antes eu tinha dificuldades maiores de vir aqui por causa do computador q travava toda hora e demorava para carregar a sua página. Agora é outro, a facilidade é maior.
    Te convido a ver as postagens que você deixou de ver!
    Beijos na alma, poeta lindo e talentoso!

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  31. Mergulhei em tuas palavras... E estou encantada. Parabéns.

    Beijos!

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  32. A escrita da poesia encaminha em diversos tempos,a hora que chega e o mês que passa, e a rota da chuva não escolhe a hora da morte,a súrdez que muitos que não querem ver e nem ouvir.

    Belas e complexas suas palavras aqui deixada.

    Uma Feliz semana para você.
    Bjs

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  33. Olá Jorge.Palavras que etoam a rota da chuva, a morte que vem,o cego que não enxerga e o surdo que não quer ouvir,a liberdade e no calendário que permanece em estado de nostalgia.Filsoficamente nas entrelinhas as cores são de todos e muitos não a exergam,nem a si mesmo.
    Belo poema!
    Bjs e uma ótima semana.Nati

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  34. que seja eterno enquanto dure e permaneça em poesia para nós teus leitores :)

    beijos

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  35. Ola Jorge Poeta!!

    Sua escrita sempre profunda!
    Muitas vezes achamos que conduzimos a nossa vida..
    mas ledo engano, basta uma brisa para nos tirar da rota!!

    bjs.....

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  36. Meu querido Jorge

    Há muros que nos cortam os passos...caminhos que nos ferem os pés...espinhos que se espetam na carne e fazem os poetas soltar gemidos sobre as folhas mortas da esperança e caminhar de alma nua e mãos vazias sobre as teias que nos amordaçam o gestos no tempo que nos limita o espaço.
    E como sempre fico sem palavras perante o IMENSO do teu poema.

    Deixo o meu beijinho com carinho e admiração
    Sonhadora

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  37. Olá Jorge,
    Tento colocar seu blog no meu "blogroll" mas algo acontece que ele desaparece! Curto muito os seus poemas e esse foi realmente incrível, principalmente na passagem:"versos avulsos, sem rima, rumo e direção". Por vezes sinto que tais versos, são as melhores criações dos poetas!


    Abraços Flávio.
    --> Blog Telinha Crítica <--

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  38. Não sei se nele caberá o coração, mas sei que a grandeza das tuas palavras arrancará as folhas desse calendário e perdurará como insígnia da poesia.
    Beijo com admiração

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  39. Olá Jorge, belo, sereno e nostálgico como sempre.
    Incertezas num calendário onde o tempo sempre comanda a vida e o sentir. Adorei. Beijos com carinho

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  40. previsão de explosão lírica!
    astro que és não foge as letras nem os cometas em meio a tantos descaminhos.

    " caberá o coração na bola de papel de um calendário?"

    suspeito que nem se for amassado um dos dois...

    beijo, meu tão querido!

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  41. seguir e viver..
    prever?.. sonhar.
    mas o tal calendário nos arrasta..
    sempre saudade de estar por aqui poeta querido..
    beijos ..

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  42. pensei, tão tentador quanto impossível fazer do coração um compasso de espera e poder filtra-lo...amarfanhando, arrumando, esmagando tamanhos vasos densos, confusos, intrusos...ò corrente infinita!

    amigo, sempre infinita a tua escrita e as músicas que nos ofereces...adorei :-)!
    beijos

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  43. Vim deixar um abraço
    agradecer sua presença carinhosa
    Bjuss
    Rita!!!

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  44. Esse calendário, que nos arrasta num tempo sem tempo, onde nos perdemos das rotas que jamais iremos conhecer. O coração, esse é grande demais para se prender ao espaço onde por vezes o obrigamos a viver.

    Imponentes as tuas palavras Jorge, adoro ler-te!
    beijinho
    cecilia

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  45. nada cabe na bola de um calendário, essa ilusória medida que insistimos em manter, como se ressignificássemos os dias e os sentires a cada novo mês...

    tanta, tanta, tanta saudades daqui, querido amigo...

    agora vou lendo e respirando tua poesia que sempre me alimenta :)

    beijo, imenso, por conta da saudade

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  46. Olá, Jorge.
    Podemos até tentar controlar nossa vida, mas, muitas vezes, ela é apenas uma folha seca sendo levada de lá pra cá pelo vento inconstante.
    Abraço, Jorge.

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  47. e, de repente: estonteantemente poema
    A cair sobre a viagem de luz
    e sombra
    negrume fálico dum dia
    (quem sabe se morto)
    cheio de saudades dessa memória
    Sem rima, rumo ou direcção.

    Beijinho Poeta :)
    Boa semana

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  48. Não... o coração não cabe na bola de papel de um calendário ! As cercas? Inúmeras, impostas quiçá por esse mesmo calendário.
    Mas crê, doce Poeta, tua escrita extrapola quer as cercas que nos são impostas, quer o timing de um calendário.
    Bjnho

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