segunda-feira, 29 de novembro de 2010

helenismos

I. mediterrâneo
uma aranha borda o mar com patas de veludo azul.
entre a água e o abismo
o coração dos homens ensinando aos deuses
que a casa nunca é apenas a pedra que nos escreve.

nauplie [primeira capital da grécia]

II. pártenon
os deuses ergueram as colinas
na estrada que lava o sangue dos homens.
foi esse o dia em que a terra me segurou pelos braços
e inverteu os hemisférios.

acrópole

III. atenas
levantas o pó da estrada
e ofereces o coral líquido
[mesmo em insidioso equilíbrio
rezei].
athena não desceu do altar
mas desvendou o céu
e amparou o voo
[os pássaros também batem o pé
e aprendem a gritar].

e agora, convidas-me a ficar?

erecteion [perspectiva de uma cariátide]

IV ágora
no livro da ágora
há vulcões inflamados onde crescem morangos
e planícies que agitam a voz.
ah, se eu mandasse,
os deuses haveriam de ralhar
e a verdade despiria o anonimato.

os céus de corinto

V. afrodite
serás tu a palavra
que abre o rosto e alaga o corpo?
[pergunta o poeta]
serás tu a boca
que doura o mel no pólen do amor?
[suspira o amante].
o silêncio é a única resposta que os assombra.

erecteion

VI. regresso
que noite é esta
que depõe a despedida na tua mão?
acaso terei cantado alto de mais?

teatro de epidauro

VII. regresso II
somos apenas a saudade
e o seu derradeiro antídoto.

entre amigos



bouzouki

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

a porta dos violinos

o altar dos ventos (a acrópole ao fundo)

no sopé da colina, detalhe (a acrópole ao fundo)

o arco da poesia é incerto
não o nego
algures entre a flecha e os signos.
assim é a vida:
contamina a presença com a ausência
inaugurando o vazio verbal.

no novo tempo da página
caem deuses e templos
de uma antiguidade recente:
da ágora ao partenon
lábios de mel escorrem
sobre os beijos da memória
enquanto chronos cobre fendas
na nascente que se fez pedra.

a hora é frágil
sob a respiração da lua branca.
no altar dos ventos
ofereço o corpo ao olvido
[o absoluto sempre foi o bilhete
asfixiando na garrafa do náufrago].

talvez um dia receba a imagem inteira
de um olimpo-por-descobrir.

atenas, 23 de novembro de 2010




mediterrâneo, ost, 1992

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

etiquetas VIII

I. argila
Já não esperas o sul do corpo
ou as pérolas nos olhos dos pássaros.
[entre os uivos dos vivos e a serenidade dos mortos]
podes perder o instante
mas ainda há a eternidade.

praia da polvoeira

II. tiestes
o sol roeu-nos o corpo
lambeu-nos os ossos
e limpou-se ao tecido da pele.
ao castigo escapou a alma
que vive acima do homem
e não se deixa seduzir
pela nudez da tua voz.

são pedro de moel

III. máscara
corvos loucos
pintam os rostos e
despem os corpos
com pincéis negros na voz.
a arder-lhes no voo
a noite:
faz ninho sobre o meu peito.

jorge molder

IV. vertigem
alfabeto do corpo
mãos grávidas
ascensor dos deuses.

jorge molder



lhasa & stuart staples, that leaving feeling


sábado, 13 de novembro de 2010

deserção

àqueles que não desistem
àqueles que têm os olhos grandes
àqueles a quem nascem raízes nos pés
àqueles que conservam a verdade na voz.
[os outros? simplesmente não existem...]

jan saudek

as cidades de coral
descem sobre os homens.
enchem-lhes a boca
com palavras completas que mentem
na hora de nomear todas as coisas -
rostos sujos casas vazias
pratos quebrados telhas varridas
aço ferro e algodão

somos o reflexo
da árvore que enterrou a floresta
somos o espelho
do poema que perdeu a mão
e nessa grandeza de argila
um rosto
[um] só;
apoia-se sobre a lâmina que,
rasgando o solo,
é osso e estandarte
de um lugar que foi seu.

ousa despir as palavras
ameaça roubar os silêncios
e entra
seguro
na escuridão
que lhe anoitece o corpo
e o canto.

que mania a minha
de chegar sempre tarde
aos lugares onde não me esperam...


lhasa de sela, i'm going in

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

hemopalavras [ou a tranfusão verbal]

gregory colbert, tranquility

ei, poeta,
se as palavras “são como punhais”
e se as há “de vida e de morte”
por que insistes em golpear a garganta
com as lâminas de vidro?
ousa sangrar-lhes o veneno
antes de parires a poesia.

(referências iniciais a eugénio de andrade e a mário cesariny)




tindersticks, no more affairs

terça-feira, 9 de novembro de 2010

acorrentados - resultado

foram muitos os bloguers/amigos que aderiram ao repto lançado no dia 4 de novembro nesta rubrica "acorrentados". aqui está o resultado das diferentes páginas 34, linhas 8:

1. zélia guardiano

o que o interessava nos desenhos da criança era justamente aquele universo interior tão original que a criança projectava no papel.


2. domingos barroso
(de livro oculto)
apaguem as luzes, pois a noite é feroz...


3. andy

o que é pena é que neste areal da vida, onde cada um segue o seu caminho, não haja nem tolerância nem humildade para respeitar o norte que o vizinho escolheu.


4. ingrid
adoro meus dois pimpolhos como meus próprios filhos.


5. giomara gomes
na verdade a língua está se transformando atualmente com mais rapidez do que em qualquer outra época do renascimento.


6. vais

pois apesar de, ela tivera alegria. ele esperaria por ela, agora o sabia. até que ela aprendesse.


7. analuz
ia recorrer novamente à garrafa, mas viu que estava vazia.
- por que se há de ter pena de ti? - interrogou o taberneiro.


8. maria borges

seja como for, eu vou,
pois quase sempre acredito:
ando de olhos fechados
feito criança brincando de cega.
mais de uma vez saio ferida
ou quase afogada,
mas não desisto.


9. lara amaral
o fantasma de um operário que caíra da cúpula do capitólio durante a construção era visto vagando pelos corredores com uma caixa de ferramentas.


10. adriana karnal
(sem título)
partee points out that one of the strongest early motivations for events came from kamp and rohrer´s work on tense and aspect in discourse interpratation.


11. vanessa souza moraes
a varanda do apartamento mal podia ser chamada de varanda. só de a gente pisar nela, o corpo já quase encostava na grade de alumínio. melhor dizendo que era uma porta abrindo para o ar, com umas traves de alumínio para evitar que, por descuido, alguém despencasse lá de cima.


12. assis de freitas
- Continuo achando a coisa fantástica demais. e muito perigosa.


13. lívia azzi
sair do estabelecido e habitual, mesmo ruim, é sempre perturbador.


14. so sad

e os firmamentos - fogem-
diademas-decaem-dobram-se-os doges
gotas sem som-em um disco de neve.


15. ana f.

o amor não leva tanto tempo assim para se manifestar.


16. cida
...sei ter o pasmo essencial, que tem uma criança se, ao nascer, reparasse que nascera deveras...


17. cris de souza

alvo
adoro uma bobeira
uma palhaçada
uma palavra à margem
uma idéia engraçada
uma sacanagem
adoro a surpresa da piada
uma indecência boa
adoro ficar à toa fazendo trocadilhos
obscenos com sexo.
adoro o que não tem nexo
e por isso faz rir
adoro a bobagem pueril
a coisa que não tem rumo
que de repente me escolhe
e me olha.


18. laura alberto
pela casca não se conhece o fruto se lhe não tivermos metido o dente.

sábado, 6 de novembro de 2010

voracidades [por laura alberto & jorge pimenta]

zbigniew reszka

manifesto anti-figurões [e figurinhas]

há-os aos montes os figurões
[já ouviste falar dos figurinhas?]
colam-se na sola dos sapatos, mal-cheirosos
[não sabem andar descalços]
sobem pelas caleiras dos lares
espreitam nas janelas, das casas
[deitam-se no chão
à espera da respiração das rosas]
fervilham em caldeirões gastos
em sangue brando, fedendo.
[ah, druidas do fogo
já nem as rosas sabem que são rosas].

há-os aos montes os figurões
espeto-lhes o garfo, o tridente
deixá-los berrar na noite
[já ouviste falar dos figurinhas?
perderam a coluna vertebral
e passaram a viver em hortos sem luar]

felizmente a morte
escorre sempre pelo tecto.
[e aquece a terra
já com as flores desmentidas].

(laura alberto & jorge Pimenta)


david bowye, the heart's filthy lesson


três escarros

– olha aquele coração que ali vai.
– sabes, passei a odiar esses gajos, caretas previsíveis, sempre com bocejos nas palavras. uma vez tentei agarrar um deles, gritar-lhe para lhe suster o passo. o gajo olhou com desdém e prosseguiu. Não tem noção da grandeza e que só por ela se pode afastar os mortos. filho-da-puta!
– acorda, não estarás a sonhar? espera, não o digas já, acabaste de adormecer. não é o sonho que aparece, são só dentes podres que te sorriem. acorda.
– já acordei. e sabes porquê? porque quanto mais perto do sonho, mais longe da utopia. e eu que sempre acreditei na leveza que escorre da im.possibilidade…

– sou o teu despertador, não te esqueças de lhe dar corda.
– sou a tua corda. de que te serve teres os ponteiros se a máquina não funciona?

– ouvi dizer que há o silêncio, nesse teu cemitério de estátuas.
– o silêncio?... schiu.

(laura alberto & jorge pimenta)


einstürzende neubauten, sabrina

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

acorrentados


quem escreve, por norma, não prescinde da leitura.
acorrentados é uma rubrica que cheguei a alimentar no meu primeiro blogue, o circum-viagem (curiosamente por sugestão da minha querida amiga e poeta ana salomé), mas que, quase um ano volvido sobre estas viagens de matizes diversos, não reeditei. julgo ser oportuno fazê-lo agora, tanto mais que tenho andado a escrever sobre a falência das palavras e, metaforicamente, da poesia (a ironia maior é usar palavras e a própria poesia como arma de arremesso) e não quero ser interpretado como mercenário da própria alma :).
sem mais deambulações, lanço-me directo no assunto. acorrentados é a reedição de uma rubrica que propõe aos meus blogfriends que entrem numa espécie de corrente circular, onde cada um de nós partilha um detalhe da leitura que está a fazer, no momento, e de modo aleatório. desta vez, a ideia é publicar o que a leitura presente oferece na página 34, linha 8.
tenho andado a ler poesia (herberto hélder e garcia lorca), bem assim como o último romance de saramago, “a viagem do elefante”. eis o que oferece o livro na página e na linha mencionadas:

"a quem talvez não vejamos mais, ou talvez sim, porque a vida ri-se das previsões e põe palavras onde imaginamos silêncios, e súbitos regressos quando pensámos que não voltaríamos a encontrar-nos."
nota: para que a frase fizesse sentido, entrei nas linhas 7, 9 e 10.


convido todos os bloguers e amigos que por aqui vão passando a deixar o seu contributo sob a forma de comentário. recordo: página 34, linha 8 do livro que se encontram presentemente a ler.

a todos um abraço!

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

poema (l)ou cura?

jean michel basquiat, auto-retrato

do grande escrutinador
todos os nomes nascem mortos.
artes mágicas empurram a imperfeição
para o bailado dos versos
que contornam o sudário
desse deus que nunca soube a morada dos filhos.
no archote da poesia pôs a arder
vida beleza felicidade.
[até eu,
nos sonhos de poeta louco,
acendo maior lucidez…]

é por isso que,
já de olhos abertos,
escarneço do poema cego
e me lanço pela borda fora.

e não é que a eternidade
inscreve o seu nome na queda?


the national, conversation 16

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

tindersticks ao luar



a noite era de outubro; a banda, os tindersticks. não sei porquê, mas antes mesmo de comprar os bilhetes imaginei um ambiente outonal, com folhas de cores dissipadas a aveludar a voz sussurrada e rouca de barítono de um stuart staples prenunciando a melancolia que percorre esta estação do ano e as canções da inesquecível banda de nottingham. não me enganei. nem mesmo a temperatura amena e a claridade que emoldurava os céus do porto conseguiram iludir a sonoridade que sempre marca os acordes da banda, caracterizados, justamente, pela simplicidade triste e melancólica, potenciada por uma voz que segue a melhor tradição de trovadores que (en)cantaram uma geração, como é o caso de leonard cohen.
o palco foi um dos mais emblemáticos do país: o coliseu. casa cheia (o que não estranha, tal é a força dos tindersticks junto do público português que, desde 1993 – o ano da sua formação –, sempre lhes devotaram veneração); a heterogeneidade do público apenas a suspeita de que não há uma idade ou um tempo para se gostar de escutar boa música. no palco, exibe-se a parafrenália instrumental a que a banda recorre com o propósito de renovar o seu som, num exercício que, se dúvidas houvesse, reputa os seus elementos como músicos verdadeiros e não apenas rapazes que vendem canções.
nunca assistira a qualquer concerto dos tindersticks antes, mas confesso que figuravam no elenco daqueles que teria de garantir, mais cedo ou mais tarde. E a razão é apenas uma: vivi ao som de faixas como can we start again ou my oblivion, sempre bordadas pelo fino recorte da voz do seu imortal vocalista.
o espectáculo começou à hora marcada (ou não fosse a banda natural da old albion), sem grande aparato ou alarido. os sete músicos invadiram o palco e por ali permaneceram durante cerca de hora e meia, focando a sua atenção em temas do último álbum, falling down a mountain, mas não ignorando clássicos intemporais, como buried bones, here ou tiny tears, este já num muito aguardado encore.
a actuação foi sóbria, elegante, muito performativa e quase nada espectacular, bem secundada por uma variedade de efeitos de luz que, em momento algum, se revelaram ostensivos ou distractivos. e nem mais seria necessário, pois o intimismo da voz e das canções, a beleza das letras, bem assim como o ambiente encantatório que os tímidos movimentos de staples e sua banda esboçavam em palco, garantiam um quadro de delicadeza e ternura que embalou para momentos de desprendimento material. os mais desatentos, os menos conhecedores dos ritmos dos tindersticks ou os pápa-concertos desabridos podem alegar que a actuação chegou a roçar a frieza (os inevitáveis piropos pontuando o final de cada canção oscilavam entre o marvellous e o és uma salgadeira!). a verdade é que a beleza não tem de ser explicada: é, ou não é; sente-se, ou não se sente. tudo o mais é fait-divers; tudo o mais é acessório.
lá fora, já no carro, o concerto continuava, ainda com staples e os tindersticks. naquela noite amena de outono, o regresso fez-se depressa de mais…



tindersticks, buried bones



tindersticks, my oblivion

terça-feira, 26 de outubro de 2010

etiquetas VII

I. atlântico
escorre pelo baloiço
o hálito húmido do sexo
tantas vezes trespassado
pela gula do homem.


praia da polvoeira



II.eurus

de que serve ter
raízes seguras
e troncos viris
se toda tu
és tempestade?…

praia da polvoeira



III. teoria do caos
uma borboleta bate as asas
em torno do sorriso.
sede é a sua boca
e desejo as suas asas.
por que não a deixas pousar no poema?

cabo carvoeiro, peniche



IV. vigília
o sangue inteiro
não chega para lavar os ossos
que pregaste na epiderme do lençol
antes do voo,
algures entre o ópio e a insónia. farol de são pedro de moel



kings of convenience, gold in the air of summer

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

todos os caminhos

duy huynh, dreamers meeting place
(imagem sugerida pela cristiana, amiga paulista que, com artes alquímicas, sabe vencer o tempo e esconder o mar, esteja em espanha, no brasil ou na argentina)

há uma pedra que ensina a loucura.
sentou-se nas escadas do tempo
cansada de esperar pelo dia
que esqueceu o rosto
(mas, então, não somos o próprio tempo?...).
ninguém explica a memória
ou a subverte,
mesmo que usando bocas pequenas
com beijos de fogo
e sémen de girassóis.

pudesse eu entrar na parede da tua casa
adornar o teu jardim
pudesse eu apoiar-te o cansaço
agarrar-te o suor
pudesse eu esconder-te o desencanto
ou segurar-te a pele a estalar...

é a cura pelo desejo
é o desejo sem cura

ainda assim,
apesar de a árvore ter mirrado a meio caminho do céu
os nomes dos loucos são tão verdadeiros como as pedras.

(àqueles que não conhecem a verbo desistir;
àqueles que fazem do verbo resistir a primeira pedra da casa...
mesmo que em silêncio)


interpol, all of the ways

domingo, 17 de outubro de 2010

odisseia

pavese, falling leaf girl

procuro a casa e os epigramas
que dividem toda a esfera
alimento-me de morangos e neve
que crescem na ficção das coisas
até porque o diamante duro
nem sempre rasga a superfície do ser.

o caminho?
a certeza
que nem todos os dias sabem apagar
talvez por isso as estrelas cadentes
ainda batam à tua porta.

procuro a casa e os criptogramas
que distinguem todo o emblema
alimento-me de mascavo e pele
que cravam na fracção das coisas
até porque o destino duro
nem sempre rende a artífice do ser.

o carimbo?
a clareira
quem nem todos os dias sabem afagar
talvez por isso as estrelas carentes
ainda beijem a tua porta.

(Cris de Souza & Jorge Pimenta)



Björk, pagan poetry

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

etiquetas VI

jean sebastien monzani


I. verbicídio
um dia hei-de escrever a tua história
(logo após ter matado todas as palavras)


II. (in)confidência
falei-te de mares que dormem
e de pássaros escondidos atrás do peito
respondeste com a mudez marinha
de canções que perderam a letra.
acreditas que a morte saiba guardar segredo?
(pssssst…
quero que saibas
que mesmo entre rostos de neblina,
há sempre alguém
que não nos deixa morrer).


III. fractura
deixaste de invocar versos
e já não sabes ler ou escrever.
para quê a poesia, então?
ruíram todas as escadas
estendidas sobre os rios.


thom yorke, analyse

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

etiquetas V

ian saudek


I. colheita
os copos estão vazios
embriagados no álcool da viagem.


II. profana comédia
o riso dos homens
salta das janelas da noite
como borboletas em chamas.
o fogo beija-lhe a pele
incendiando bocas e línguas
em latifúndios de prazer.

por que é que só sei sorrir?


III. ítaca
da terra sobe um hálito floral
que toca os abismos do oceano:
marés de sangue atolando a cabeça
correntes de fel estacando o peito
ventos húmidos arrepiando o sexo.
entre sereias e penélopes
uma só certeza:
ulisses vive.


IV. pomares
somos o tempo
(diz borges).
qual é, então, a idade do coração?
(pergunto-me).
talvez a dos frutos sem sombra.




radiohead, street spirit (fade out)

terça-feira, 5 de outubro de 2010

dele e dela

alessandro bavari

diz ele:
o destino mudou
mas as pedras permanecem intocadas.
ainda sou capaz de segurar o teu nome nos lábios
sem anagramas interrompendo a brevidade do verso.
sabes? eu sou a escrita!


diz ela:
o caminho é invisível
e da breve travessia dos corpos recordo apenas pegadas.
são gretas de noite a secar-me os lábios
e o nome? tão-só a memória do poema.
sabes? eu nunca soube ler…


digo eu:
os olhos dele e dela recuaram para o interior das estrelas.
as mãos tocam-se na meteorologia do desejo
mas os dedos desprendem-se
do movimento elíptico do mundo.
cospem o beijo na saliva de pétalas
que um dia quis ser jardim sem morte
mas a terra estremeceu e interrompeu o monólogo
dele
dela.


as bocas fecharam-se num silêncio de árvores
e dos corpos (dele e dela) restou apenas o calor
adormecido no aquário da linguagem.



nick cave, jesus of the moon

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

poesia? (ou a sentença de morte)

duy huynh

os olhos cegam
no meteorito fingido da poesia.
comecei a falar baixo
para o sacrifício do verso
e perdi a nave da eloquência
no litoral do corpo.

o escopo? a tinta? o livro?
chovem sob a luz do candeeiro.

ah, poema,
renego de ti,
traço fino do amor
que floresce no musgo do sangue,
escarneço de ti,
violino sem maestro
que inveja a orquestra,
desdenho de ti,
beijo de açucena
que arrasta o lábio pelos cabelos.

e neste silêncio verbal
rolam sexos para fora do corpo,
sorrisos para o canto da boca,
sonhos para longe do peito.
afinal a cortina de água
fechou a boca de cena.

quero agora tocar a vida
no seu bocejo indomável
que se agita do outro lado do palco.
a poesia?
os tontos que lhe estendam a mão.



nick drake, place to be

terça-feira, 28 de setembro de 2010

etiquetas IV

fotografia de jorge molder

I. perspectiva
por vezes tudo sangra.
quase nada se esquece…



II. concessiva
continuo a acreditar
na explosão da alma
sob a locomotiva da pele.

e o sangue a correr de boca em boca.



III. (in)tensões
talvez um dia
te saiba ler com as mãos
talvez um dia
possa sangrar-te o nome
talvez um dia
me deixes escrever-te no peito

então,
não sabes que a loucura
arde ao lado do grito
na caverna ácida das intenções?



IV. hiato
o chão da vida
no derradeiro verso
racha o sono e o sonho pela metade.

já nem as noites sabem ser inteiras.

leonard cohen, the partisan

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

advertência

fotografia de josé figueira

quando o silêncio,
lascivo,
te lamber o peito
em busca da palavra que já não sabes dizer,

lembra-te, amigo,

não é o verbo,
quem viaja na sintaxe do ser
não é o verso
quem alimenta o animal louco;

são comboios e aviões,
automóveis e navios,
usinas e buzinas
em ejaculação mecânica
sobre ventres estéreis
onde a escrita é apenas
uma invenção dos homens
e o amor
a anedota maior
na boca dos deuses.




the mars volta, the widow

sábado, 18 de setembro de 2010

de olhos fechados

queridos amigos,
não tenho movimentado o "viagens" e tão pouco vos tenho visitado nesses lugares que muitos, respiram, já, como pele da sua própria tecitura. os meus olhos estão em repouso, sob uns óculos escuros, desde quarta-feira e assim terão de permanecer por mais alguns dias, pelo que as viagens permanecerão em rota branda, mas definida.
deixo-vos aqui um pouco do que senti "de olhos fechados". a música seleccionada é apenas um flash de cor, luz, brilho e som que o "império do sol" nos oferece e que nem sempre valorizamos:



empire of the sun, we are the people

prometo regressar à actividade dos blogues (e, sobretudo, das palavras e sua magia) dentro em breve. aguardem-me :)

um abraço com saudades de todos os meus companheiros de viagem!


de olhos fechados
é a treva
impressa dos dois lados do corpo.

a beleza com os olhos abertos
onde outrora
a árvore guiava o homem;
os óculos escuros
atirados sobre a noite
onde hoje se esconde o olhar.

das figuras rutilantes,
sobram sombras
em movimentos orgásticos
que percorrem o fogo da epifania.

a beleza fez-se sémen estéril
e apodreceu
às mãos
que trajam escafandros sem mar.

e o homem
por detrás do olhar nocturno
transveste-se em tecido negro:
é apenas a cegueira antopológica.

mergulho na noite (jp)