valença do minho
subi a escadaria feminina do inferno
ampla, virgem, quase meiga
como aqueles pássaros que voam para o sul
sem deixarem rasto
sempre que a geografia reabre fronteiras.
em comum: o voo.
as asas colam-se nas mãos
e sigo mais rápido do que quero.
grito-lhes que parem
que tenho vertigens
que o fogo magoa,
mas a rota já elas a sabiam de cor
desde que os lábios giraram em círculos
sobre os lábios
e na saliva se inscreveu o teu nome.
passavam por mim as nuvens
e cidades crepusculares,
ficavam para trás noites claras
e abraços a arder em marés.
apenas o mar permanecia ali
imenso, intocado, inteiro
como a mãe que amamenta para lá da fome
e para cá do desejo de crescer.
cruzo-me com locomotivas sem braços
fornalhas sem carvão
próteses, tumores e doenças
que a subida acentua em tons de vermelho vivo.
calo-me
[há viagens que se fazem em silêncio]
fecho os olhos
[há viagens que não sabem ver]
e durmo,
como aquele gato
que depois do festim sexual
repousa nas pernas da avó,
enroscado nos novelos que cosem os dias
[as garras, recolhidas, já não raspam o pecado].
e os jornais desaparecem
e as televisões desligam-se
e o mundo corta os pulsos
vergado ao peso das lembranças;
apenas a viagem prossegue
cada vez mais nocturna
cada vez menos feminina
porque as viagens difíceis fazem-se solitariamente
sem horas
sem sexo
sem roncos metálicos
ou árvores verdes
[é que o céu é cada vez mais uma miragem].
subitamente
o derradeiro degrau.
lá fora?
fios partidos reconjuntam-se
na geometria da ordem
que dá o nome a todas as coisas.
do lado de dentro?
cai neve
branca, fria, severa.
entre o homem e a sua imagem
apenas o corpo
aquele que aprenderá a respirar
pelos pulmões da neve e das luzes
sem vidros
com janelas tingidas de negro;
afinal
a memória tem olhos
e só sabe ver o que quer.
deixá-la falar pelos buracos das feridas:
neste fim de tarde
o céu começa nas cicatrizes dos homens.
[quem o não sabe?]
morrissey, america is not the world