sexta-feira, 29 de outubro de 2010

tindersticks ao luar



a noite era de outubro; a banda, os tindersticks. não sei porquê, mas antes mesmo de comprar os bilhetes imaginei um ambiente outonal, com folhas de cores dissipadas a aveludar a voz sussurrada e rouca de barítono de um stuart staples prenunciando a melancolia que percorre esta estação do ano e as canções da inesquecível banda de nottingham. não me enganei. nem mesmo a temperatura amena e a claridade que emoldurava os céus do porto conseguiram iludir a sonoridade que sempre marca os acordes da banda, caracterizados, justamente, pela simplicidade triste e melancólica, potenciada por uma voz que segue a melhor tradição de trovadores que (en)cantaram uma geração, como é o caso de leonard cohen.
o palco foi um dos mais emblemáticos do país: o coliseu. casa cheia (o que não estranha, tal é a força dos tindersticks junto do público português que, desde 1993 – o ano da sua formação –, sempre lhes devotaram veneração); a heterogeneidade do público apenas a suspeita de que não há uma idade ou um tempo para se gostar de escutar boa música. no palco, exibe-se a parafrenália instrumental a que a banda recorre com o propósito de renovar o seu som, num exercício que, se dúvidas houvesse, reputa os seus elementos como músicos verdadeiros e não apenas rapazes que vendem canções.
nunca assistira a qualquer concerto dos tindersticks antes, mas confesso que figuravam no elenco daqueles que teria de garantir, mais cedo ou mais tarde. E a razão é apenas uma: vivi ao som de faixas como can we start again ou my oblivion, sempre bordadas pelo fino recorte da voz do seu imortal vocalista.
o espectáculo começou à hora marcada (ou não fosse a banda natural da old albion), sem grande aparato ou alarido. os sete músicos invadiram o palco e por ali permaneceram durante cerca de hora e meia, focando a sua atenção em temas do último álbum, falling down a mountain, mas não ignorando clássicos intemporais, como buried bones, here ou tiny tears, este já num muito aguardado encore.
a actuação foi sóbria, elegante, muito performativa e quase nada espectacular, bem secundada por uma variedade de efeitos de luz que, em momento algum, se revelaram ostensivos ou distractivos. e nem mais seria necessário, pois o intimismo da voz e das canções, a beleza das letras, bem assim como o ambiente encantatório que os tímidos movimentos de staples e sua banda esboçavam em palco, garantiam um quadro de delicadeza e ternura que embalou para momentos de desprendimento material. os mais desatentos, os menos conhecedores dos ritmos dos tindersticks ou os pápa-concertos desabridos podem alegar que a actuação chegou a roçar a frieza (os inevitáveis piropos pontuando o final de cada canção oscilavam entre o marvellous e o és uma salgadeira!). a verdade é que a beleza não tem de ser explicada: é, ou não é; sente-se, ou não se sente. tudo o mais é fait-divers; tudo o mais é acessório.
lá fora, já no carro, o concerto continuava, ainda com staples e os tindersticks. naquela noite amena de outono, o regresso fez-se depressa de mais…



tindersticks, buried bones



tindersticks, my oblivion

terça-feira, 26 de outubro de 2010

etiquetas VII

I. atlântico
escorre pelo baloiço
o hálito húmido do sexo
tantas vezes trespassado
pela gula do homem.


praia da polvoeira



II.eurus

de que serve ter
raízes seguras
e troncos viris
se toda tu
és tempestade?…

praia da polvoeira



III. teoria do caos
uma borboleta bate as asas
em torno do sorriso.
sede é a sua boca
e desejo as suas asas.
por que não a deixas pousar no poema?

cabo carvoeiro, peniche



IV. vigília
o sangue inteiro
não chega para lavar os ossos
que pregaste na epiderme do lençol
antes do voo,
algures entre o ópio e a insónia. farol de são pedro de moel



kings of convenience, gold in the air of summer

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

todos os caminhos

duy huynh, dreamers meeting place
(imagem sugerida pela cristiana, amiga paulista que, com artes alquímicas, sabe vencer o tempo e esconder o mar, esteja em espanha, no brasil ou na argentina)

há uma pedra que ensina a loucura.
sentou-se nas escadas do tempo
cansada de esperar pelo dia
que esqueceu o rosto
(mas, então, não somos o próprio tempo?...).
ninguém explica a memória
ou a subverte,
mesmo que usando bocas pequenas
com beijos de fogo
e sémen de girassóis.

pudesse eu entrar na parede da tua casa
adornar o teu jardim
pudesse eu apoiar-te o cansaço
agarrar-te o suor
pudesse eu esconder-te o desencanto
ou segurar-te a pele a estalar...

é a cura pelo desejo
é o desejo sem cura

ainda assim,
apesar de a árvore ter mirrado a meio caminho do céu
os nomes dos loucos são tão verdadeiros como as pedras.

(àqueles que não conhecem a verbo desistir;
àqueles que fazem do verbo resistir a primeira pedra da casa...
mesmo que em silêncio)


interpol, all of the ways

domingo, 17 de outubro de 2010

odisseia

pavese, falling leaf girl

procuro a casa e os epigramas
que dividem toda a esfera
alimento-me de morangos e neve
que crescem na ficção das coisas
até porque o diamante duro
nem sempre rasga a superfície do ser.

o caminho?
a certeza
que nem todos os dias sabem apagar
talvez por isso as estrelas cadentes
ainda batam à tua porta.

procuro a casa e os criptogramas
que distinguem todo o emblema
alimento-me de mascavo e pele
que cravam na fracção das coisas
até porque o destino duro
nem sempre rende a artífice do ser.

o carimbo?
a clareira
quem nem todos os dias sabem afagar
talvez por isso as estrelas carentes
ainda beijem a tua porta.

(Cris de Souza & Jorge Pimenta)



Björk, pagan poetry

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

etiquetas VI

jean sebastien monzani


I. verbicídio
um dia hei-de escrever a tua história
(logo após ter matado todas as palavras)


II. (in)confidência
falei-te de mares que dormem
e de pássaros escondidos atrás do peito
respondeste com a mudez marinha
de canções que perderam a letra.
acreditas que a morte saiba guardar segredo?
(pssssst…
quero que saibas
que mesmo entre rostos de neblina,
há sempre alguém
que não nos deixa morrer).


III. fractura
deixaste de invocar versos
e já não sabes ler ou escrever.
para quê a poesia, então?
ruíram todas as escadas
estendidas sobre os rios.


thom yorke, analyse

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

etiquetas V

ian saudek


I. colheita
os copos estão vazios
embriagados no álcool da viagem.


II. profana comédia
o riso dos homens
salta das janelas da noite
como borboletas em chamas.
o fogo beija-lhe a pele
incendiando bocas e línguas
em latifúndios de prazer.

por que é que só sei sorrir?


III. ítaca
da terra sobe um hálito floral
que toca os abismos do oceano:
marés de sangue atolando a cabeça
correntes de fel estacando o peito
ventos húmidos arrepiando o sexo.
entre sereias e penélopes
uma só certeza:
ulisses vive.


IV. pomares
somos o tempo
(diz borges).
qual é, então, a idade do coração?
(pergunto-me).
talvez a dos frutos sem sombra.




radiohead, street spirit (fade out)

terça-feira, 5 de outubro de 2010

dele e dela

alessandro bavari

diz ele:
o destino mudou
mas as pedras permanecem intocadas.
ainda sou capaz de segurar o teu nome nos lábios
sem anagramas interrompendo a brevidade do verso.
sabes? eu sou a escrita!


diz ela:
o caminho é invisível
e da breve travessia dos corpos recordo apenas pegadas.
são gretas de noite a secar-me os lábios
e o nome? tão-só a memória do poema.
sabes? eu nunca soube ler…


digo eu:
os olhos dele e dela recuaram para o interior das estrelas.
as mãos tocam-se na meteorologia do desejo
mas os dedos desprendem-se
do movimento elíptico do mundo.
cospem o beijo na saliva de pétalas
que um dia quis ser jardim sem morte
mas a terra estremeceu e interrompeu o monólogo
dele
dela.


as bocas fecharam-se num silêncio de árvores
e dos corpos (dele e dela) restou apenas o calor
adormecido no aquário da linguagem.



nick cave, jesus of the moon

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

poesia? (ou a sentença de morte)

duy huynh

os olhos cegam
no meteorito fingido da poesia.
comecei a falar baixo
para o sacrifício do verso
e perdi a nave da eloquência
no litoral do corpo.

o escopo? a tinta? o livro?
chovem sob a luz do candeeiro.

ah, poema,
renego de ti,
traço fino do amor
que floresce no musgo do sangue,
escarneço de ti,
violino sem maestro
que inveja a orquestra,
desdenho de ti,
beijo de açucena
que arrasta o lábio pelos cabelos.

e neste silêncio verbal
rolam sexos para fora do corpo,
sorrisos para o canto da boca,
sonhos para longe do peito.
afinal a cortina de água
fechou a boca de cena.

quero agora tocar a vida
no seu bocejo indomável
que se agita do outro lado do palco.
a poesia?
os tontos que lhe estendam a mão.



nick drake, place to be